quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Lu Aiko Otta - Medidas impopulares serão inevitáveis

Valor Econômico

Ajuste fiscal, em qualquer horizonte de tempo, desagradará a grupos específicos e consumirá capital político

A turma do “deixa disso” já entrou em campo, mas a decisão de manter zerados os tributos federais sobre combustíveis emitiu sinais ruins em duas áreas centrais do governo: economia e meio ambiente. Primeiro, porque suspendeu a mais contundente iniciativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na direção do ajuste fiscal que pretende implementar ainda no primeiro trimestre do ano. Ele havia dito que a desoneração não seria prorrogada. Seriam R$ 52 bilhões a mais na arrecadação.

Segundo, porque essa medida estimula o consumo de combustíveis fósseis no momento em que o Brasil tenta se recolocar no mundo como uma potência ambiental. De bônus, o corte de tributos sobre a gasolina é uma medida que beneficia a classe média e desvia dos cofres públicos recursos que poderiam ser destinados às emergências sociais.

A dúvida que ficou no ar é qual o preço político que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está disposto a pagar pelo ajuste das contas públicas.

A prorrogação do benefício fiscal aos combustíveis, que representará renúncia de R$ 25 bilhões neste ano, foi tomada em meio a boatos de que a Petrobras estaria preparando um reajuste nos preços dos combustíveis para o dia 1º de janeiro. Seria um bom pretexto para críticas de bolsonaristas, que fizeram desse tema um mote de campanha eleitoral.

Outra explicação é que a prorrogação dará tempo para a nova diretoria da Petrobras tomar posse. No documento explicativo enviado pelo Planalto ao Congresso Nacional, as justificativas são: dar tempo hábil para estruturar uma política de preços e o risco de alta da inflação.

Qualquer que seja o motivo, fica aparente um baixo apetite do governo em tomar medidas impopulares. No entanto, não existe alternativa se a ideia é estabelecer um horizonte previsível para a dívida pública e, assim, resgatar a confiança dos agentes econômicos.

Uma das poucas pistas sobre o ajuste que está sobre a mesa de Haddad aponta para um vespeiro: a dedução de despesas médicas no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). O próprio Lula deu a dica, ainda durante a transição. Falou da “injustiça” que é uma pessoa como ele fazer exames e consultas na rede privada e abater os gastos do IR, enquanto brasileiros com renda mais baixa não abatem porque não podem pagar plano de saúde.

Haddad retornou ao tema ontem, em entrevista ao site Brasil 247. Levantou a lebre da justiça social da dedução. Enquanto isso, uma pessoa da audiência pediu que o abatimento de gastos com saúde fosse estendido a bichos de estimação.

O ajuste fiscal, em qualquer horizonte de tempo, desagradará a grupos específicos e consumirá capital político. A lista de “maldades” é grande, após três décadas de enrolação no debate sobre melhoria nos gastos públicos e de favorecimentos a setores.

O ministro já disse muitas vezes que na administração da ex-presidente Dilma Rousseff houve exagero na concessão de desonerações tributárias. A lista soma R$ 456 bilhões e contempla o Simples, a Zona Franca de Manaus e vários regimes setoriais especiais. É prometido um pente-fino nesses chamados “gastos tributários”. Grupos que tiveram força política para instituí-los vão reagir a tentativas de corte.

Outra frente do ajuste é avaliar os gastos públicos, para usar de forma mais eficiente o dinheiro do contribuinte. Algo que os especialistas chamam de “spending reviews”. É uma tarefa que ficará com Simone Tebet, ministra do Planejamento.

Estudioso do tema, o especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro explica que esse é um método de gestão fiscal baseado em revisões periódicas dos gastos. No Brasil, ajudaria a abrir espaço fiscal, trocando despesas que não dão o retorno esperado à sociedade por outras prioridades.

É um trabalho que se alinha com a elaboração do novo marco para as contas públicas brasileiras. Deve estar em harmonia também com a própria elaboração do Orçamento federal.

Novamente, é uma tarefa politicamente espinhosa. Isso porque cada centavo do Orçamento federal, de R$ 5,3 trilhões neste ano, tem uma justificativa de mérito para estar lá. A questão é a qualidade, a prioridade e a lisura de cada despesa dessas.

Se um “spending review” bem feito dá conta de enfrentar as pressões políticas que determinaram esse ou aquele gasto, é uma questão. A experiência internacional, conta Ribeiro, mostra que esse trabalho é capturado quando não se superam quatro obstáculos: avaliações incompletas ou enviesadas, assimetria de informações entre quem avalia e quem executa, falta de coordenação do processo, falta de liderança qualificada.

Dá certo quando há apoio das lideranças políticas e compatibilidade da revisão de gastos com a agenda legislativa e o processo orçamentário, informa.

Haddad não tem receio de críticas, como deixou claro em seu discurso de posse. Ele disse aceitar o papel de patinho feio da Esplanada, antecipando o “fogo amigo”.

A artilharia será um pouco diferente desta vez por causa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, com sua licença de gastos extras de quase R$ 200 bilhões. Ao recompor o orçamento dos ministérios e dirigir recursos para áreas que são prioridade de Lula, antecipou o atendimento a demandas que afloram em inícios de governo.

A retomada do programa Minha Casa, Minha Vida é um exemplo. O programa estava praticamente zerado. Com a PEC, a área de habitação ganhou reforço de R$ 9 bilhões.

Outro exemplo é a pressão do funcionalismo. Neste ano, após a PEC, há R$ 11 bilhões para acomodar aumentos salariais e R$ 1,5 bilhão para novas contratações.

O conto de Hans Christian Andersen (1805-1875) nos ensina sobre resiliência, respeito a diferenças e importância da autoestima. Nele, não é um ato heroico, e sim o passar do tempo que cria as condições objetivas para acabar com o sofrimento do protagonista. Na versão brasiliense não será assim. O desfecho feliz exigirá esforço e, principalmente, um sólido apoio político.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto.
Isso é informação e formação.
Uma é consistente, a outra sólida.
Que continuemos tendo artigos como este.

Anônimo disse...

Excelente análise! Vamos ver os próximos passos (e voos?) do patinho feio...