sábado, 5 de agosto de 2023

Pablo Ortellado - Polícia não pode agir como gangue

O Globo

Moradores do Guarujá relataram à imprensa que pelo menos algumas mortes pareciam execuções extrajudiciais

A semana que passou foi marcada pelos desdobramentos da operação da polícia que, em reação à morte de um policial no Guarujá, matou 16 pessoas em apenas seis dias — a mais violenta operação da polícia de São Paulo desde o Massacre do Carandiru. O número elevado de mortes, na mesma região, num curto espaço de tempo, levantou a suspeita de que pode ter sido vingança contra o crime organizado que tinha tirado a vida de um dos seus. A suspeita foi corroborada por depoimentos de moradores das regiões onde a operação aconteceu. Eles relataram à imprensa que pelo menos algumas mortes pareciam execuções extrajudiciais, fora do contexto de resistência armada à ação da polícia. Há também relatos de torturas.

Policiais que atuam como influenciadores nas mídias sociais celebraram o número crescente de mortes, aludindo a uma espécie de placar de bandidos eliminados. A conta de um ex-policial e ex-candidato a deputado estadual ironizava que a estamparia era uma oportunidade para quem quisesse empreender no Guarujá, em referência às camisetas com fotos de mortos utilizadas por parentes das vítimas. Noutra postagem, dizia que a “Rota é igual Tele Sena. Resultados de hora em hora”. Enquanto os apoiadores da polícia celebravam a violência desmedida, moradores relatavam viver em pânico, com casas arbitrariamente invadidas e troca de tiros por todo o bairro. O comércio fechou mais cedo, e havia relatos de policiais “quebrando tudo” para forçar comerciantes a entregar os criminosos.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, reagiu mal à crise, respaldando integralmente a atuação da tropa e minimizando as denúncias de moradores e os indícios de abuso. Antes de qualquer apuração, disse taxativamente que “não houve excesso” e classificou a atuação da polícia de “profissional”. Seu secretário de Segurança Pública, um policial linha-dura e notório apologista da violência repressiva, disse que as denúncias não passavam de “narrativas”. Nenhum dos dois se mostrou muito empenhado numa investigação rigorosa de possíveis excessos e abusos. A ouvidoria da polícia reclama que não tem acesso aos boletins de ocorrência, e o Ministério Público relatou que, ao solicitar os vídeos das câmeras corporais usadas pelos policiais, recebeu a resposta de que não havia imagens.

A resposta do governo Tarcísio faz parte de uma triste tradição no Estado de São Paulo, segundo a qual, quando um policial é morto pelo crime organizado, uma reação desmedida é justificada para resgatar a autoridade da polícia. Quando esse ambiente de condescendência com o abuso se forma, o resultado, quase sempre, são execuções extrajudiciais de suspeitos, sem o devido processo legal e qualquer tipo de proporção, uma justiça típica das piores ditaduras, em que sempre morrem inocentes.

Foi o que aconteceu em maio de 2006, quando, depois de uma onda de atentados do PCC a delegacias e quartéis, centenas de pessoas foram mortas em toda a cidade de São Paulo, no que ficou conhecido como os “crimes de maio”. Esses crimes até hoje não foram esclarecidos, e as estimativas do número de vítimas variam de pouco mais de cem a mais de 500.

As forças oficiais de segurança não podem se engajar em vendetas, como se fossem uma gangue armada do Estado. Se uma demonstração de força é necessária para resgatar a autoridade do Estado diante do cruel assassinato de um policial, deve ser dentro da lei, com prisões em massa, e não com execuções extrajudiciais e o achaque à população dos bairros.

 

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