O Estado de S. Paulo
A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos
O governo Lula conseguiu, na mesma semana,
aprovar na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
modificativa de parte do sistema tributário e, também, que a determinação de
empate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) fosse favorável à
União, e não ao contribuinte, redundando em aumento considerável da
arrecadação.
O apoio da Câmara dos Deputados decorreu da liberação de mais de R$ 5 bilhões para pagamento das emendas parlamentares, que estavam represadas, enviando aos municípios numerário para obras e serviços definidos genericamente, indicando-se apenas destinarse ao atendimento da saúde, ou da educação, ou de obra viária. Os deputados, dessa maneira, demonstram prestígio e angariam créditos em seus redutos eleitorais, valendo a troca do voto pelo empreendimento conquistado na busca de reeleição.
A adesão dos parlamentares a projetos de
emenda constitucional e de lei não se deu, portanto, para parcela considerável,
por espírito público. Pesaram na decisão a liberação da verba de emenda
parlamentar propiciadora da reeleição em 2026 e a promessa da nomeação de
apaniguados dos partidos para cargos distribuidores de benefícios. É exemplo o
compromisso de concessão da direção da Caixa Econômica Federal, que libera
financiamentos do programa Minha Casa Minha Vida, e da Funasa, responsável pela
execução do saneamento básico em pequenas cidades. A direção de ambas permite
angariar votos.
Novamente, trata-se o público como se
privado fosse. Gilberto Freyre apontou como elemento definidor da unidade
nacional a estrutura patriarcal de nossa sociedade, que permitiu reunir o
diverso e o contraditório sob um mesmo teto, graças a um denominador comum, um
traço uniforme no comportamento do estamento governamental ao longo do tempo: a
falta de distinção entre o público e o privado.
Esta supremacia dos interesses particulares
sobre o interesse geral foi, para Gilberto Freyre, ostensiva na formação
brasileira. Os poucos que dirigem o País não o fazem em favor da maioria. No
Estado patrimonialista, que ainda remanesce, “a minoria exerce o governo em
nome próprio” e o exercita não em prol da Nação, mas segundo sua conveniência.
Assim, discórdias são superadas por meio de verbas, de loteamento de cargos e
honrarias.
Ausente a dimensão do bem comum, o
desfazimento de eventuais conflitos pode ser facilmente alcançado pela
conciliação dos interesses, mediante a satisfação do maior número de
correligionários, em acordo tácito entre os “donos do poder”, o que pereniza a
desigualdade e a exclusão social.
Para Sérgio Buarque de Holanda, a
“cordialidade” é característica essencial da brasilidade – para muitos, no
sentido de composição entre setores divergentes da elite, que jamais levam a
ferro e fogo as disputas, de forma a não comprometer o sistema de poder. Esta
semana, reabriu-se o Congresso Nacional e a dança dos interesses voltou à
baila.
Dois alicerces do sistema político não
ajudam a governabilidade: 1) o sistema eleitoral proporcional, facilitador da
guerra entre membros do mesmo partido, disputando cada um por si; 2) o sistema
presidencialista, desenhado na Constituição, que criou o Executivo forte,
graças à adoção de medidas provisórias, garantidoras do processo legislativo
sem o Congresso, mas instaurou um presidente fraco, sujeito a todas as
chantagens, por falta de fidelidade dos parlamentares a um programa de governo.
O apoio é conquistado no varejo pelo atendimento a reivindicações individuais.
Assim, o Congresso é desmedidamente forte
por não ter qualquer responsabilidade e nem ser sancionado com dissolução.
Arthur Lira atua como um primeiro-ministro sem risco de moção de censura.
Há que reconhecer ser esta estrutura
política uma facilitadora da corrupção de toda espécie, de que são exemplos
recentes o mensalão e o petrolão, cuja realidade a farsa da narrativa
negacionista não desfaz.
O malefício que contamina nossa política
não está apenas no clientelismo, mas no corporativismo, a ver que a Câmara dos
Deputados não se divide em partidos, mas em bancadas, reunidos os deputados de
acordo com sua prioridade ideológica, ou seja, a bancada da bala, a da Bíblia,
a do boi.
Enquanto não houver reforma política, será
assim. Fundamental, portanto, instalar-se o sistema eleitoral distrital misto,
que fortalece e dá conteúdo aos partidos políticos, permitindo às
circunscrições representação no Parlamento, para se criar “o gosto pelo bem
comum”.
Por fim, é de todo conveniente o sistema
semipresidencialista, com instituição de governo em responsabilidade conjunta
do Executivo e da Câmara dos Deputados, podendo esta, em crise de
governabilidade, vir a ser dissolvida. A chantagem só será desfeita ao se
colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na
cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de
votos.
Do contrário, só resta recorrer à cegueira
deliberada, fazendo de conta que é normal a extorsão dos parlamentares sobre o
Executivo, por ter sido sempre assim.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
Um comentário:
Falou tudo e falou bonito!
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