O Globo
Os Buarques de Holanda bem poderiam ter
ocupado quatro posições na Academia, em vez de apenas uma
A Academia Brasileira de Letras é uma
instituição que, segundo Millôr Fernandes, se compõe de 39 membros e um morto
rotativo. Paradoxalmente, é esse defunto que a mantém viva, garantindo-lhe
periódicas transfusões de sangue novo.
Reza a lenda que, para aspirar à imortalidade,
é preciso mais que ter apreço à literatura, cultivar a língua e escrever um
livro: tem de dar festa, beijar mão, cabalar voto — talentos de que nem todo
postulante é dotado. Por isso muita gente boa acaba tomando não o chá das
quintas-feiras, mas o de cadeira — ou de sumiço.
Para reparar injustiças culturais — ou,
pelo menos, meditar sobre elas —, a ABL programa periodicamente o ciclo de
palestras “Cadeira 41”, em referência à cátedra virtual reservada aos que nem
tentaram ou morreram na praia.
A 41ª cadeira é como o quarto poder, exercido pela imprensa, ou o 12º jogador, também conhecido como torcida. Sem autoridade formal, mas uma espécie de soft power, entidade não fungível, patrimônio imaterial.
Sob a égide de Júlia Lopes de Almeida —
barrada na casa que ajudou a fundar —, já estão lá devidamente assentados
muitos imortais póstumos: Cruz e Souza, Jorge de Lima, Rubem Fonseca, Rubem
Braga, Antenor Nascentes, Nélson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Carlos Drummond,
Osman Lins. Um time de responsa, cujos artilheiros são Monteiro Lobato (duas
vezes na trave) e Lima Barreto (três tentativas e um triste fim).
Os Buarques de Holanda bem poderiam ter
ocupado quatro posições, em vez de apenas uma (a do Aurélio, pai de todos nós).
Sérgio não quis, Chico não quer, Heloísa abriu mão do sobrenome. Outra
dinastia, a dos Verissimos — Érico e Luis Fernando —, corre o risco de ficar no
banco.
A Academia que elegeu o Gilberto Gil de
“Drão”, “Metáfora” e “Rebento” deixou escapar Aldir Blanc (Teus olhos
barcos/gritam adeus/no mar dos meus). Mas ainda tem a chance de imortalizar
Paulo César Pinheiro (Portela,/sobre a tua bandeira, esse divino manto/tua
águia altaneira é o Espírito Santo no templo do samba, O importante é que a nossa
emoção sobreviva/e a felicidade amordace essa dor secular).
Não teve Cecília nem Clarice, dois nomes
fundamentais. A voz insubmissa do “Romanceiro da Inconfidência” tinha o grave
defeito de pertencer ao gênero feminino, numa época em que isso pesava mais que
o domínio de qualquer gênero literário. E o gênio de Clarice não se moldava à
atmosfera do lugar — muito menos o de Hilda Hilst. Mas ainda é tempo que Adélia
Prado lá desembarque com sua “Bagagem” (Não me importa a palavra, esta
corriqueira./ Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe/os sítios
escuros onde nasce o “de”, o “aliás”/o “o”, o “porém” e o “que”, esta
incompreensível/muleta que me apoia./ Quem entender a linguagem entende Deus).
Ao lado do Petit Trianon, um Énorme Trianon
vai tomando forma, com a Academia que poderia ter sido (Nava, Sabino,
Graciliano, Manoel de Barros, Leminski, Millôr) e não foi — e a que ainda pode
ser (Raduan Nassar, Cristóvão Tezza, Dalton Trevisan), mas dificilmente será.
Se os 39 imortais não abrirem o olho (o
morto rotativo sabe disso de olhos fechados), periga a cadeira 41 se tornar a
mais prestigiosa — e cobiçada — peça da mobília.
Um comentário:
Muito bom o artigo.
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