É um erro excluir os delatores do indulto de
Natal
O Globo
Medida de Lula desestimula um instrumento
poderoso de investigação e dificulta a resolução de crimes
Definido de forma vaga na Constituição, o indulto natalino se transformou nos últimos anos numa forma de o presidente da República manifestar suas inclinações pessoais e, ao mesmo tempo, aliviar a carga que pesa sobre um sistema carcerário superlotado. Em 2017, ficou célebre o perdão abrangente do então presidente Michel Temer a todos os presos por crimes não violentos (contestado na Justiça, depois validado pelo Supremo). No indulto final de seu governo, Jair Bolsonaro fez questão de incluir policiais e militares. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva excluiu do indulto concedido na semana passada os condenados que tenham feito colaboração premiada com a Justiça.
Além dos delatores, Lula deixou
de fora — corretamente nesse caso — os autores de crimes hediondos, violência
contra a mulher, delitos ambientais e os que atentam contra o Estado
Democrático de Direito, como os réus e condenados pelos ataques do 8 de
Janeiro. É prerrogativa do presidente manter presos réus ou condenados por
crimes que considera graves. Mas não faz sentido Lula excluir do perdão quem
assinou acordo de delação. Com isso, ele desincentiva um instrumento poderoso
de investigação criminal.
É frágil o argumento, usado por petistas, de
que delatores já foram beneficiados com redução da pena. Uma coisa nada tem a
ver com a outra. A exclusão, inédita, apenas expõe a má vontade do governo
petista com a colaboração premiada. Lula acredita que o modelo foi desvirtuado
e que as acusações acabam anuladas na Justiça por falta de provas.
A delação premiada foi regulamentada pela Lei
de Organizações Criminosas no governo da petista Dilma Rousseff. Trata-se de
acordo entre Estado e réu para obter informações que ajudem a resolver crimes
ou desbaratar quadrilhas. Quando as delações da Operação Lava-Jato levaram à
prisão figuras históricas do PT,
como o próprio Lula, passaram a ser amaldiçoadas.
É certo que as informações obtidas por meio
de delações não bastam como provas. São pontos de partida para investigações
mais detalhadas. Em geral, fornecem à polícia e ao Ministério Público pistas
para destrinchar crimes que permaneceriam insolúveis de outro modo. Cabe aos
investigadores cruzar dados, aprofundar a apuração e verificar o relato dos
delatores. Na dúvida, a acusação é descartada.
Com os reveses da Lava-Jato, tornou-se
frequente a anulação de acordos de leniência e delação, ainda que os réus
tenham confessado seus crimes diante das câmeras. A defesa costuma alegar que a
confissão ocorreu sob pressão, ou até tortura. São conhecidos os erros da
Lava-Jato, mas não dá para querer reescrever a História do maior esquema de
corrupção desbaratado no Brasil.
E acordos de delação premiada não existem
apenas no âmbito da Lava-Jato. A colaboração premiada do ex-PM Élcio de Queiroz
mudou o rumo das investigações do assassinato da vereadora Marielle
Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A delação do
ex-ajudante de ordens Mauro Cid tem
ajudado a desvendar as tramas golpistas no Planalto durante o governo
Bolsonaro.
A concessão do indulto de Natal é obviamente
prerrogativa do presidente, mas não tem cabimento pôr no mesmo patamar quem fez
delação premiada e réus ou condenados por crimes hediondos. Desestimular
colaborações só tornará ainda mais difícil esclarecer crimes, num país em que
quase dois terços deles permanecem sem solução.
Recuperação de índices de vacinação traz
alívio depois de anos de queda
O Globo
Mesmo que a cobertura ainda esteja distante
dos patamares desejáveis, governo está no caminho correto
É um alento que, depois de sete anos de
queda, os índices de
vacinação infantil estejam em recuperação no Brasil. De acordo
com o Ministério da Saúde, a tendência foi verificada para oito vacinas no
período de janeiro a outubro deste ano (em relação ao mesmo período do ano
passado): hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, tríplice
bacteriana (contra difteria, tétano e coqueluche), primeira e segunda doses da
tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) e febre amarela. Das oito
recomendadas até 1 ano de idade, só a vacina contra catapora registrou queda. É
verdade que nenhuma delas atingiu o patamar necessário de cobertura da
população, entre 90% e 95%. Mesmo assim, o avanço é motivo para celebração.
A recuperação da cobertura vacinal traz
esperança de que o Brasil possa se ver livre de doenças que voltaram a
ameaçá-lo nos últimos anos. O caso mais notável é o sarampo. Em 2016, o país
recebeu da Organização Mundial da Saúde um certificado pela erradicação da
doença, mas voltou a registrar casos e mortes, e o documento foi revogado. O
motivo: queda nos patamares de imunização. A vacina tríplice viral — usada
contra o sarampo — cobria 95,4% da população em 2016, mas caiu para 74,9% em
2021. Agora, a cobertura está em 85,6% — ainda distante do patamar necessário
para deter a circulação do vírus (acima de 95%), mas um progresso inegável.
Outra doença erradicada que ameaça retornar
em razão da queda na vacinação é a poliomielite, que voltou a fazer vítimas
mundo afora. Vedete de campanhas de vacinação no passado com o personagem Zé
Gotinha, a vacina contra a pólio alcançava uma cobertura de 84,4% em 2016. Ela
caiu para ameaçadores 60,5% em 2021, mas agora se recuperou para 74,6%.
Novamente distante do nível que garante a imunidade coletiva, ainda assim um
avanço.
Alguns estados se destacaram no resgate da
vacinação. No Piauí, em apenas um ano, a cobertura da primeira dose da tríplice
viral subiu de 82,8% para 97,8% e a da vacina contra a pólio foi de 75,9% para
89,9%. No Espírito Santo, a meningocócica cresceu 33,1 pontos percentuais, de
58,5% para 91,6%. O segredo dessas campanhas bem-sucedidas deveria ser
compreendido em detalhes para poder ser reproduzido nas demais unidades da
Federação.
O sucesso em geral se deve à ação em duas frentes. Primeiro, é essencial o esclarecimento sobre a eficácia e a segurança das vacinas, alvos contumazes de campanhas de desinformação. O governo Jair Bolsonaro foi pródigo em semear, durante a pandemia, dúvidas que incentivaram a hesitação na população. A segunda frente é logística. De nada adianta as doses estarem compradas e disponíveis se houver dificuldades para levá-las aos postos de saúde ou aonde as crianças possam recebê-las. A recuperação dos índices mostra que o governo tem sabido agir com competência em ambas as frentes. O desafio agora é resgatar a cobertura robusta que sempre foi motivo de orgulho para o Brasil.
China crescerá menos, e mundo aguarda
definições de Pequim
Valor Econômico
Governo chinês prometeu apoiar a economia,
mas não está claro ainda se esse apoio conseguirá reverter a atual trajetória
descendente
A desaceleração da China neste segundo
semestre foi um dos destaques da economia global no ano. As incertezas em
relação ao país deverão continuar a preocupar o mundo em 2024. O governo chinês
prometeu apoiar a economia, mas não está claro ainda se esse apoio conseguirá
reverter a atual trajetória descendente.
A China deve crescer pouco mais de 5% neste
ano, segundo projeções (o FMI espera 5,4%; a OCDE, 5,2%). Com isso, atingirá a
meta oficial de crescimento, de cerca de 5%. Pode parecer um resultado bom, mas
não é bem assim. Primeiro porque esse crescimento ocorre em relação a um ano
excepcionalmente ruim, que foi 2022, quando o país cresceu apenas 3%, segundo
pior avanço em quase 50 anos. Em segundo lugar, porque não se confirmou a
expectativa de uma retomada forte da economia chinesa neste ano, após o fim das
restrições adotadas para enfrentar a pandemia de covid-19. Por fim, esse
crescimento foi escorado num elevado déficit fiscal. O déficit do governo
central deve cair para 3,8% do PIB neste ano, mas o déficit consolidado do
setor público (que inclui governos locais e empresas estatais) estaria acima de
7%, de acordo com projeções de consultorias.
A meta de crescimento para 2024 foi debatida
num evento recente que reuniu as principais autoridades chinesas, mas só deve
ser divulgada em março. A expectativa é que fique novamente em torno de 5%.
Atingir esse número será bem mais difícil agora. Primeiro, porque a base de
cálculo será o resultado melhor deste ano. Segundo, porque Pequim pretende
reduzir o déficit fiscal no ano que vem (a meta para o governo central é de
3%). E terceiro porque os indicadores macroeconômicos deste fim de ano vêm
sendo persistentemente ruins, o que aponta um começo de ano fraco de 2024. As
principais organizações internacionais preveem queda no crescimento chinês no
ano que vem: o Banco Mundial, para 4,5%; o FMI, para 4,6%, e a OCDE, para 4,7%.
A série de dados recentes ruins impressiona.
A alta do PIB no terceiro trimestre recuou para 4,9%, ante os 6,3% do segundo.
Ao contrário do resto do mundo, o país está em deflação: os preços caíram 0,5%
nos últimos 12 meses até novembro, o que indica uma fraca demanda interna. A
deflação nos preços ao produtor é ainda maior, de 3% no ano. As exportações
devem cair 5% em 2023. O índice SSE da bolsa de Xangai acumula queda de quase
7% neste ano e de cerca 20% em relação ao último pico, em fevereiro de 2021. As
vendas no varejo e a produção industrial cresceram em novembro, mas devido a
uma distorção estatística, pois novembro de 2022 foi um mês muito ruim, por
causa da política de covid-zero que vigorava; numa comparação de período mais
longo, tanto o consumo como a produção industrial estão caindo no ano.
Os principais problemas da economia chinesa
são o colapso do setor imobiliário, que abalou vários segmentos e vem
deprimindo a confiança e o consumo internos; a combinação de queda na demanda
dos países ricos e de embate estratégico com o Ocidente, que estão afetando
tanto as exportações como os investimentos. Nada aponta que esses obstáculos
serão superados em 2024. Pelo contrário, há o risco de eles se agravarem ainda
mais. Muito vai depender, então, da reação do governo chinês à desaceleração.
Pequim vem falando há meses de ampliar o apoio à economia e já adotou algumas
medidas, porém de impacto limitado, como oferecer linhas de crédito ao setor
imobiliário. A mídia chinesa vem relatando a insatisfação do setor privado
chinês com a falta de apoio efetivo. Até agora não há sinal da bazuca de gasto
público que Pequim utilizou em outras ocasiões.
O governo chinês parece estar evitando uma
nova rodada de investimentos, e há duas boas razões para isso. A primeira é a
disparada da dívida total do país (soma da dívida pública com a dívida
privada), que atingiu 272,1% do PIB em 2022 e deve superar a dívida americana
neste ano. A segunda razão é que a taxa de retorno dos investimentos continua
caindo, resultando em perdas bilionárias em vários setores por excesso de
investimento, como destacou o professor Michael Pettis (Financial Times,
20/12). A crise no setor imobiliário chinês, que tem centenas de milhares de
apartamentos não vendidos e/ou não finalizados, ilustra bem essa situação.
Num sinal de alerta quanto a essa escalada da
dívida, a empresa de classificação de risco Moody’s rebaixou neste mês a
perspectiva da China de estável para negativa, sinalizando um possível
rebaixamento da nota de crédito do país. A Moody’s destacou a situação ruim das
finanças de governos locais e empresas chinesas, que podem precisar de um
maciço socorro do governo central.
Essa indefinição sobre o crescimento chinês deve perdurar em 2024, o que dificultará a estimativa de demanda de quase todas as principais commodities globais. O mundo todo, mas especialmente os principais exportadores de commodities, como o Brasil, aguarda com ansiedade as definições de política econômica de Pequim para o ano que vem.
Mínimo a preservar
Folha de S. Paulo
Valorização do piso salarial depende de
reformas para se tornar sustentável
O salário
mínimo subirá em janeiro de R$ 1.320
para R$ 1.412 mensais, o que significará o segundo ano consecutivo
de reajuste acima da inflação.
Infelizmente, a política de valorização, marca de gestões petistas retomada por
Luiz Inácio Lula da
Silva, dificilmente será sustentável nas condições atuais.
Conforme a fórmula restabelecida, o mínimo
será elevado de acordo com a inflação acumulada mais um ganho correspondente ao
crescimento do Produto Interno Bruto de dois anos antes —em 2022, o IBGE apurou
alta de 2,9%.
Como este 2023 deverá fechar com taxa similar
de expansão econômica, já está contratado novo aumento real em 2025.
O impacto dessa
política no mercado do trabalho é
limitado pela altíssima taxa de informalidade, que beira os 40% no país e
atinge percentuais maiores justamente nas regiões mais pobres. Nos estados mais
ricos, ademais, já há pisos superiores ao nacional.
Os efeitos mais líquidos e certos se dão na
clientela da Previdência Social e de programas assistenciais e trabalhistas do
governo federal —o que se traduz em aumento do gasto público, nem sempre com
resultados sociais correspondentes.
Cumpre recordar que a estratégia de atrelar
os reajustes do mínimo ao PIB vigorou
entre 2007 e 2019, mas nos últimos anos deixou de proporcionar ganhos
relevantes.
Isso ocorreu porque o colapso orçamentário do
governo Dilma
Rousseff (PT) levou a uma recessão brutal, com queda do PIB em
2015 e 2016, seguida por um quadro de lenta recuperação nos anos seguintes. O
abandono dos ganhos reais fez parte dos ajustes forçados na tentativa de
reequilibrar as contas.
A retomada do mecanismo ignora ainda a
recente reviravolta da política social, iniciada sob Jair
Bolsonaro (PL) e com o Auxílio
Brasil lançado como bandeira eleitoral, que desaguou num Bolsa
Família que hoje desembolsa o quádruplo de seu padrão histórico.
Se é correta a prioridade para um programa
que tem foco nos estratos de fato mais carentes da população, tamanho aumento
do dispêndio deveria vir acompanhado de uma revisão de ações menos eficientes
no combate à pobreza.
O impacto nas contas do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS),
por exemplo, poderia ser evitado com a desvinculação entre as aposentadorias e
o salário mínimo.
Sem isso, o reajuste dos benefícios, em meio
à tendência de envelhecimento da população mais acentuada do que se imaginava,
apressará a necessidade de uma nova reforma da
Previdência.
Não será surpresa, pois, se a fórmula de
valorização do piso vier a ser abandonada ou modificada em poucos anos —por
decisão prudente ou imposição da realidade.
A regra do jogo
Folha de S. Paulo
Regulação de apostas é passo necessário;
atividade deve sofrer tributação pesada
Apostar em loterias ou jogar em cassinos é
uma forma perigosa de perder dinheiro. A chance de ganhar existe, mas é mínima
—ao contrário do risco de vício. Já quem explora a jogatina, seja o Estado ou a
iniciativa privada, tem a certeza matemática de que vai ganhar.
Ainda assim, não cabe ao poder público
definir como cada cidadão pode gastar seus recursos, nem se mostra eficaz a
estratégia da proibição. Malefícios associados ao jogo, como a lavagem de
dinheiro e a ludomania, são reais, mas devem ser
enfrentados com informação, restrições legais e tributação.
Por esses motivos, é racional o projeto
recém-aprovado pelo Congresso que regulamenta apostas esportivas em
ambiente virtual, ainda dependente da sanção do Palácio do Planalto. Ainda que
possa merecer aperfeiçoamentos posteriores, o texto começa a preencher lacunas
da legislação atual.
Com o advento da internet e a proliferação de
cassinos virtuais sediados no exterior, o antigo veto legal ao jogo no país
teve sua inoperância escancarada. Afinal, qualquer pessoa que disponha de um
computador e um cartão de crédito internacional pode apostar.
Fazê-lo nem sequer configuraria delito, uma
vez que a operação está fora da jurisdição brasileira.
Numa primeira tentativa de lidar com o
assunto, aprovou-se em 2018 a lei 13.756, que autorizava apostas. Entretanto,
por influência da bancada religiosa, o Congresso não regulamentou a matéria ao
longo dos quatro anos seguintes. Com isso, o Brasil permitiu que outros países
arrecadassem impostos sobre os jogos de seus cidadãos.
Não resta dúvida de que a atividade deve ser
alvo de tributação muito elevada, a exemplo de produtos nocivos à saúde como
bebidas alcoólicas e cigarros. Trata-se não apenas de desincentivar a prática
mas também de angariar recursos para mitigar seus danos.
Nesse sentido, os parlamentares aprovaram
taxação de 12% sobre a arrecadação líquida (descontados os prêmios) das
empresas, abaixo dos 15% cobrados no Reino Unido, que serviu de modelo para a
elaboração do projeto (o governo acabou propondo 18% para fortalecer o
Ministério do Esporte).
Prevê-se ainda que as casas de apostas paguem até R$ 30 milhões pela licença para operar no país, além de alíquota de 15% sobre os ganhos de apostadores (ante 30% propostos pelo Executivo). Caberá daqui em diante verificar a adequação e a eficácia de tais cifras.
Governo sem marca
O Estado de S. Paulo
Encerrado o primeiro ano de seu terceiro mandato, Lula se limita a repetir o que fez nos mandatos anteriores, sem deixar claro o que pretende para o futuro e sem reduzir tensão política
O presidente Lula da Silva voltou ao Palácio
do Planalto em 2023 sem grandes expectativas, pois afinal não se elegeu em
razão de ideias novas e projetos ousados, e sim porque a rejeição ao então
presidente Jair Bolsonaro provou ser maior que a sua. Sua vitória dizia mais
respeito ao passado do que ao futuro: foi uma espetacular volta por cima,
depois de anos de escândalos de corrupção que culminaram com sua prisão –
revertida não porque sua inocência tenha sido comprovada, mas por vícios
processuais – e quando ainda estava fresca na memória nacional a tragédia do
governo de Dilma Rousseff, criatura de Lula. Não é pouca coisa.
Ainda assim, cobrado insistentemente durante
a campanha sobre o que pretendia fazer caso fosse eleito, Lula limitou-se a
dizer que estava ali, sobretudo, para “salvar a democracia”. Uma vez salva a
democracia, obviamente não por méritos de Lula, e sim porque as instituições
republicanas resistiram ao assalto bolsonarista, restou um governo eleito sem
projeto definido.
Ao final do primeiro ano, período em que
normalmente os presidente dizem a que vieram, a malaise é evidente, e mesmo em
áreas nas quais o governo mostrou empenho genuíno, como na Fazenda ou nas
Relações Exteriores, os resultados foram relativamente frustrantes.
Ao mesmo tempo que tratou de restaurar a
imagem internacional do Brasil, transformado em orgulhoso pária por Bolsonaro,
Lula não aproveitou todo o capital político que o País tem por sua natural
liderança na área ambiental, preferindo meter-se em querelas nas quais a
diplomacia brasileira, por mais habilidosa que seja, não tinha capacidade
nenhuma de interferir. Ademais, alinhou o Brasil a blocos claramente enviesados
contra o Ocidente, particularmente os EUA. O tal “Sul Global” de que Lula tanto
fala nada mais é do que o nome fantasia do quintal chinês, onde o Brasil é mero
vassalo dos interesses de Pequim.
Na Fazenda, destaque-se, por justiça, o
trabalho do ministro Fernando Haddad, que em vários momentos conseguiu dobrar
um Congresso fortemente hostil ao PT, ajudando a encaminhar a reforma
tributária. E mostrou sangue-frio ao enfrentar o “fogo amigo” do próprio PT e
do presidente. Ou seja, Haddad fez da Fazenda uma ilha de bom senso cercada de
tubarões petistas por todos os lados, mas há dúvidas razoáveis sobre sua
capacidade de resistir a esse cerco por mais três anos, nos quais haverá duas
eleições – e todos sabem o que os governos petistas são capazes de fazer para
vencê-las.
Lula retornou ao poder embevecido pela
própria glória, com a autodeclarada aura de ser uma “ideia” – para usar a
expressão com que se definiu no discurso que fez antes de ir para a prisão, em
abril de 2018. O petista segue a cartilha dos líderes que só conseguem enxergar
as próprias virtudes, e não raro transfere para ministros a responsabilidade
pela ausência de grandes feitos. Ele ainda parece trabalhar como se tivesse
ganhado a eleição muito mais para impedir que Bolsonaro vencesse do que para
governar. Sobram-lhe planos, retóricas e simbologias. Faltam-lhe projetos
compatíveis com os desafios de um Brasil hoje distante de 2002 ou de 2010.
Num país que saiu das urnas cindido, Lula
tinha o dever de articular um processo de união e de reconstrução nacional,
como, aliás, prometeu. Mas, fiel à sua natureza sindical, optou por continuar a
ser uma fonte permanente de divisões. É cansativo.
Mas ano novo é tempo de esperança, então não
custa nada esperar que Lula demonstre que não venceu a eleição só para
desmoralizar o juiz que mandou prendê-lo. O tempo é para o atual governo tanto
um apoio quanto ameaça. Drummond chamou de genial “quem teve a ideia de cortar
o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano”. Ao fazer isso, disse,
“industrializou a esperança”, pois 12 meses são suficientes para cansar
qualquer ser humano. Mas aí, lembra Drummond, “entra o milagre da renovação e
tudo começa outra vez (...) com outra vontade de acreditar que daqui pra
adiante vai ser diferente”. Nada mais longe da poesia do que a política, mas
Lula conhece não só o poder da esperança, como também a força demolidora do
desencanto.
O problema da ‘agrodependência’
O Estado de S. Paulo
Após vigor extraordinário e a supersafra de
2023, agro inicia 2024 castigado por enchentes no Sul e seca no Centro-Oeste;
economia precisa urgente de plano B para manter crescimento
O ano excepcional da agricultura brasileira
vai garantir para 2023 um crescimento econômico em torno de 3%, como preveem
analistas econômicos. Resultado razoável para um ano de cenário mundial
crítico, marcado por guerras, catástrofes climáticas e comportamento
inflacionário de difícil controle. O vigor do agronegócio foi mais do que um
alívio: foi a salvação do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023. A questão é que,
durante todo o ano, nenhum novo caminho foi efetivamente aberto para reduzir a
“agrodependência” da economia brasileira. E aí começa o problema de 2024.
O Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) divulgou recentemente o segundo prognóstico da produção
agrícola para a safra do ano que vem. Estima-se em 306,2 milhões de toneladas,
um recuo de 2,3% (menos 10,1 milhões de toneladas) em relação à supersafra de
2023, resultado que pode piorar especialmente por causa de adversidades
climáticas. Ao que tudo indica, o notável crescimento de 20,2% conquistado
neste ano será um recorde difícil de ser batido, ao menos no curto prazo.
Como mostrou o Broadcast/Estadão, o gerente
do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola (LSPA) do IBGE, Carlos
Barradas, explicou que, com os prejuízos causados pelas enchentes no Sul do
País e a seca no Centro-Oeste, a produção de 2024 começou mal. “Vamos ver se a
gente reverte”, disse, refletindo a torcida que é de todo o País.
A grande questão é que a economia não pode
ficar à mercê da sorte. É urgente um plano B para suprir eventuais percalços do
agronegócio, que cresce por méritos inegáveis, especialmente no que se refere a
investimentos em pesquisa e tecnologia e também em sustentabilidade. Porém, o
setor está sujeito a diversos fatores alheios a sua vontade, como clima, preços
internacionais das commodities, comportamento da economia em países
importadores da produção brasileira, guerras e pandemias. Qualquer tropeço e lá
se vai uma expectativa antes promissora.
Por isso, o bom desempenho do agro deveria
ser o diferencial brasileiro, não a sua base de sustentação. O ano de 2023
passou sem que alguma medida concreta fosse instituída em direção à revolução
da “neoindustrialização” prometida pelo presidente Lula da Silva e por seu
vice, Geraldo Alckmin, em artigo publicado em maio no Estadão. Naquele texto,
viam-se sinais de disposição do governo em apostar, enfim, na capacidade
produtiva nacional de forma efetiva, planejada e contínua. De lá para cá,
contudo, quase nada aconteceu – e o que aconteceu foi decepcionante, como o
velho incentivo à compra de carros, que nem sequer mudou de patamar a indústria
automotiva.
A visão deturpada de que o incentivo ao
consumo resolve tudo é o que faz do País um prisioneiro de políticas mal
elaboradas e de curto prazo que, quando muito, causam soluços de crescimento e
voos de galinha. Sem incentivos sólidos ao investimento, público e privado, a
economia continuará fragilizada, com resultados tímidos que só com muito boa
vontade podem ser classificados como crescimento. E quando se fala em
investimento, não é gasto puro e simples, como parece ser a visão
governamental, e sim dinheiro aplicado em maquinário, programas de capacitação,
desenvolvimento tecnológico e tudo o mais que confere sustentabilidade ao
crescimento.
A taxa de investimento brasileira – conhecida
pela rubrica FBCF, formação bruta de capital fixo – está atualmente em 16,6%.
Esta é a fração do PIB nacional aplicada em projetos para gerar mais riqueza.
Muito pouco. Nos países emergentes a média gira em torno de 30%. Há um consenso
entre economistas que o País necessita de, ao menos, 25% por no mínimo uma
década para crescer, de forma sustentada, em torno de 4% ao ano. Estamos longe
dessa média decenal. De acordo com os dados do IBGE, o máximo foi nas décadas
de 1970 e 1980, com a média de 21,9%. De lá pra cá, ladeira abaixo.
O crescimento econômico de longo prazo não
depende de gambiarras. A solução é um planejamento sério e a tão necessária
política industrial.
Normalização institucional
O Estado de S. Paulo
Após anos de confusão de papéis, os militares
afinal são chamados para tratar só de temas militares
O País começa a entrar no eixo da normalidade
institucional. É notável que, de uns tempos para cá, quando se ouve falar das
Forças Armadas, o que está em pauta são questões, ora vejam, afeitas à caserna.
É o caso, por exemplo, da movimentação de tropas e equipamentos para Roraima, a
fim de proteger o território nacional, haja vista a crise fronteiriça entre a
Venezuela e a Guiana.
Para este jornal, é um tanto constrangedor
ter de apontar o óbvio à luz da Constituição de 1988. Na Lei Maior estão muito
bem delineados os papéis e responsabilidades de civis e militares na ordem
institucional pós-ditadura. Aos militares da ativa não cabe, sob nenhuma
hipótese, imiscuir-se em questões políticas. O poder político é civil, ao qual
as Forças Armadas estão submetidas na figura de seu comandante em chefe, o
presidente da República. Os militares não têm qualquer ingerência sobre tudo o
que extrapola a defesa nacional.
Por mais evidente que isso fosse, criou-se
deliberadamente uma confusão no País, que contaminou por anos o debate público,
acerca da atuação das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito. A
barafunda, como se sabe, foi urdida e estimulada pelo então presidente Jair
Bolsonaro, que saiu do Exército em desonra para, décadas depois, transformar as
Forças Armadas, particularmente a Força Terrestre, num instrumento de governo –
ou, pior, numa espécie de guarda pretoriana com a qual ameaçou a Nação não poucas
vezes.
A bem do País, isso parece superado. “Olhando
para trás, vejo muitos obstáculos e dificuldades que se interpuseram em nosso
caminho. Mas vejo, também, muito empenho, trabalho, obstinação e entregas à
sociedade”, disse o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante a
confraternização de fim de ano entre o presidente Lula da Silva e os
comandantes das três Forças.
Como noticiou o Estadão, o almoço transcorreu
em clima festivo e cordial. São conhecidas as diferenças entre Lula e os
militares. O presidente, vale lembrar, assumiu o terceiro mandato sob uma
atmosfera de desconfiança mútua entre governo e caserna, justamente pelo
passado de associação direta entre alguns oficiais e o então presidente
Bolsonaro. A rigor, para o País pouco importa se Lula gosta dos militares ou se
estes nutrem simpatia pelo presidente. O que é mandatório é que cada um
respeite sua posição institucional e aja de acordo com a Constituição.
Evidentemente, não seria no intervalo de um
ano que o esforço para dissociar as Forças Armadas do bolsonarismo haveria de
ser esgotado. Mas a confraternização vale por seu aspecto simbólico. Ela
sintetiza, afinal, o que o País tem visto: os militares, em geral, deixaram as
páginas de política dos jornais para serem lembrados por suas atribuições
específicas. Que assim continue.
O mais importante a ser destacado é que o compromisso das Forças Armadas com o Estado Democrático de Direito não depende do humor de seus comandantes nem dos sentimentos do presidente da República. Trata-se de um dever constitucional – com o qual todos esses atores parecem estar de acordo.
Feminicídio exige respostas complexas
Correio Braziliense
Frear essa chaga social vai além de projetos
direcionados apenas aos personagens diretos dos crimes. Há que se considerar —
e, principalmente, estruturar — ações de maior amplitude
Uma das principais medidas indicadas para
evitar os casos de feminicídio é sensibilizar as mulheres a procurarem as
autoridades de segurança já nos primeiros sinais de violência. Uma atitude
importante. Não suficiente. Há, inclusive, o risco de o pedido de ajuda acirrar
a ira do abusador, avalia, em entrevista ao Correio, o promotor de Justiça do
Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) Daniel Bernoulli. A mesma lógica
pode se repetir quando a denúncia parte de parentes e vizinhos, também recorrentemente
mobilizados para não se calarem diante desses casos de violência.
Outro caminho comumente indicado é acirrar a
resposta aos criminosos. Solução que, por si só, também não ameniza essa
dramática realidade. No último domingo (24/12), o presidente do Tribunal de
Justiça do DF, desembargador José Cruz Macedo, assegurou, também ao Correio,
que, naquele momento, "todos os autores de feminicídio em Brasília estavam
presos ou mortos". Em menos de 48 horas, foram registrados dois novos
assassinatos de mulheres cujos suspeitos são homens que elas tinham ou tiveram
algum tipo de relacionamento.
Ao comentar os crimes mais recentes,
Bernoulli relatou que, quando o MPDFT inicia um processo penal de feminicídio,
inclui qualificadoras que aumentam "consideravelmente as punições a esses
assassinos, em casos de condenação". Não há "qualquer
tolerância", enfatizou o promotor. Ainda assim, as mortes não param de
crescer no DF e no resto do país.
Se confirmados como feminicídios, os dois
últimos casos farão com que a capital do país feche o ano amargando o dobro de
assassinatos do tipo, considerando os 17 registros feitos pela Secretaria de
Segurança Pública em 2022. No primeiro semestre deste ano, o Brasil registrou
722 feminicídios, o maior número para um primeiro semestre contabilizado pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2019, no início da série histórica,
foram 631 casos.
Frear essa chaga social, portanto, vai além
de projetos direcionados apenas aos personagens diretos dos crimes: vítima,
família e agentes do governo, como profissionais da segurança e da Justiça.
Essas são, indiscutivelmente, medidas importantes de combate à violência contra
a mulher. Porém, há que se considerar — e, principalmente, estruturar — ações
de maior amplitude, como a formação de uma sociedade que compreenda o
feminicídio como um ato de horror e atrocidade.
Para vítimas e familiares, já o é. Para
muitos criminosos, não. Um dos sinais dessa visão deturpada é o entendimento
dado aos femicídios nos presídios brasileiros, avalia Cruz Macedo. Presos
"agridem autores de crimes sexuais, que precisam ficar separados".
Não têm a mesma reação com os condenados por feminicídio, o que, na avaliação
do desembargador, indica que a naturalização da violência contra a mulher
acontece em decorrência do machismo. Vale lembrar que, neste ano, o governo
Lula não concedeu o indulto de Natal a apenados por agressão ou morte de suas
companheiras. Não há, porém, a mesma conduta em saidões de presos em outras
épocas festivas.
O presidente do TJDFT sugere como mais uma medida de combate ao feminicídio a adoção de campanhas que mostrem "a situação real desses crimes", como ficam os autores, as mulheres e os órfãos. Mobilizar escolas e famílias para a construção de uma cultura de paz e tolerância também é um caminho com efeito a longo prazo. Igrejas e outros grupos de convivência podem, e devem, impulsionar esses valores. Assim como os produtores de conteúdo, tanto profissionais quanto amadores, que retratam e ajudam a construir a forma como percebemos as diferenças de gênero e lidamos com elas. A lista de respostas é longa e complexa. Mas, mais do que nunca, urgente e necessária.
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