quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

É um erro excluir os delatores do indulto de Natal

O Globo

Medida de Lula desestimula um instrumento poderoso de investigação e dificulta a resolução de crimes

Definido de forma vaga na Constituição, o indulto natalino se transformou nos últimos anos numa forma de o presidente da República manifestar suas inclinações pessoais e, ao mesmo tempo, aliviar a carga que pesa sobre um sistema carcerário superlotado. Em 2017, ficou célebre o perdão abrangente do então presidente Michel Temer a todos os presos por crimes não violentos (contestado na Justiça, depois validado pelo Supremo). No indulto final de seu governo, Jair Bolsonaro fez questão de incluir policiais e militares. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva excluiu do indulto concedido na semana passada os condenados que tenham feito colaboração premiada com a Justiça.

Além dos delatores, Lula deixou de fora — corretamente nesse caso — os autores de crimes hediondos, violência contra a mulher, delitos ambientais e os que atentam contra o Estado Democrático de Direito, como os réus e condenados pelos ataques do 8 de Janeiro. É prerrogativa do presidente manter presos réus ou condenados por crimes que considera graves. Mas não faz sentido Lula excluir do perdão quem assinou acordo de delação. Com isso, ele desincentiva um instrumento poderoso de investigação criminal.

É frágil o argumento, usado por petistas, de que delatores já foram beneficiados com redução da pena. Uma coisa nada tem a ver com a outra. A exclusão, inédita, apenas expõe a má vontade do governo petista com a colaboração premiada. Lula acredita que o modelo foi desvirtuado e que as acusações acabam anuladas na Justiça por falta de provas.

A delação premiada foi regulamentada pela Lei de Organizações Criminosas no governo da petista Dilma Rousseff. Trata-se de acordo entre Estado e réu para obter informações que ajudem a resolver crimes ou desbaratar quadrilhas. Quando as delações da Operação Lava-Jato levaram à prisão figuras históricas do PT, como o próprio Lula, passaram a ser amaldiçoadas.

É certo que as informações obtidas por meio de delações não bastam como provas. São pontos de partida para investigações mais detalhadas. Em geral, fornecem à polícia e ao Ministério Público pistas para destrinchar crimes que permaneceriam insolúveis de outro modo. Cabe aos investigadores cruzar dados, aprofundar a apuração e verificar o relato dos delatores. Na dúvida, a acusação é descartada.

Com os reveses da Lava-Jato, tornou-se frequente a anulação de acordos de leniência e delação, ainda que os réus tenham confessado seus crimes diante das câmeras. A defesa costuma alegar que a confissão ocorreu sob pressão, ou até tortura. São conhecidos os erros da Lava-Jato, mas não dá para querer reescrever a História do maior esquema de corrupção desbaratado no Brasil.

E acordos de delação premiada não existem apenas no âmbito da Lava-Jato. A colaboração premiada do ex-PM Élcio de Queiroz mudou o rumo das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid tem ajudado a desvendar as tramas golpistas no Planalto durante o governo Bolsonaro.

A concessão do indulto de Natal é obviamente prerrogativa do presidente, mas não tem cabimento pôr no mesmo patamar quem fez delação premiada e réus ou condenados por crimes hediondos. Desestimular colaborações só tornará ainda mais difícil esclarecer crimes, num país em que quase dois terços deles permanecem sem solução.

Recuperação de índices de vacinação traz alívio depois de anos de queda

O Globo

Mesmo que a cobertura ainda esteja distante dos patamares desejáveis, governo está no caminho correto

É um alento que, depois de sete anos de queda, os índices de vacinação infantil estejam em recuperação no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, a tendência foi verificada para oito vacinas no período de janeiro a outubro deste ano (em relação ao mesmo período do ano passado): hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, tríplice bacteriana (contra difteria, tétano e coqueluche), primeira e segunda doses da tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) e febre amarela. Das oito recomendadas até 1 ano de idade, só a vacina contra catapora registrou queda. É verdade que nenhuma delas atingiu o patamar necessário de cobertura da população, entre 90% e 95%. Mesmo assim, o avanço é motivo para celebração.

A recuperação da cobertura vacinal traz esperança de que o Brasil possa se ver livre de doenças que voltaram a ameaçá-lo nos últimos anos. O caso mais notável é o sarampo. Em 2016, o país recebeu da Organização Mundial da Saúde um certificado pela erradicação da doença, mas voltou a registrar casos e mortes, e o documento foi revogado. O motivo: queda nos patamares de imunização. A vacina tríplice viral — usada contra o sarampo — cobria 95,4% da população em 2016, mas caiu para 74,9% em 2021. Agora, a cobertura está em 85,6% — ainda distante do patamar necessário para deter a circulação do vírus (acima de 95%), mas um progresso inegável.

Outra doença erradicada que ameaça retornar em razão da queda na vacinação é a poliomielite, que voltou a fazer vítimas mundo afora. Vedete de campanhas de vacinação no passado com o personagem Zé Gotinha, a vacina contra a pólio alcançava uma cobertura de 84,4% em 2016. Ela caiu para ameaçadores 60,5% em 2021, mas agora se recuperou para 74,6%. Novamente distante do nível que garante a imunidade coletiva, ainda assim um avanço.

Alguns estados se destacaram no resgate da vacinação. No Piauí, em apenas um ano, a cobertura da primeira dose da tríplice viral subiu de 82,8% para 97,8% e a da vacina contra a pólio foi de 75,9% para 89,9%. No Espírito Santo, a meningocócica cresceu 33,1 pontos percentuais, de 58,5% para 91,6%. O segredo dessas campanhas bem-sucedidas deveria ser compreendido em detalhes para poder ser reproduzido nas demais unidades da Federação.

O sucesso em geral se deve à ação em duas frentes. Primeiro, é essencial o esclarecimento sobre a eficácia e a segurança das vacinas, alvos contumazes de campanhas de desinformação. O governo Jair Bolsonaro foi pródigo em semear, durante a pandemia, dúvidas que incentivaram a hesitação na população. A segunda frente é logística. De nada adianta as doses estarem compradas e disponíveis se houver dificuldades para levá-las aos postos de saúde ou aonde as crianças possam recebê-las. A recuperação dos índices mostra que o governo tem sabido agir com competência em ambas as frentes. O desafio agora é resgatar a cobertura robusta que sempre foi motivo de orgulho para o Brasil.

China crescerá menos, e mundo aguarda definições de Pequim

Valor Econômico

Governo chinês prometeu apoiar a economia, mas não está claro ainda se esse apoio conseguirá reverter a atual trajetória descendente

A desaceleração da China neste segundo semestre foi um dos destaques da economia global no ano. As incertezas em relação ao país deverão continuar a preocupar o mundo em 2024. O governo chinês prometeu apoiar a economia, mas não está claro ainda se esse apoio conseguirá reverter a atual trajetória descendente.

A China deve crescer pouco mais de 5% neste ano, segundo projeções (o FMI espera 5,4%; a OCDE, 5,2%). Com isso, atingirá a meta oficial de crescimento, de cerca de 5%. Pode parecer um resultado bom, mas não é bem assim. Primeiro porque esse crescimento ocorre em relação a um ano excepcionalmente ruim, que foi 2022, quando o país cresceu apenas 3%, segundo pior avanço em quase 50 anos. Em segundo lugar, porque não se confirmou a expectativa de uma retomada forte da economia chinesa neste ano, após o fim das restrições adotadas para enfrentar a pandemia de covid-19. Por fim, esse crescimento foi escorado num elevado déficit fiscal. O déficit do governo central deve cair para 3,8% do PIB neste ano, mas o déficit consolidado do setor público (que inclui governos locais e empresas estatais) estaria acima de 7%, de acordo com projeções de consultorias.

A meta de crescimento para 2024 foi debatida num evento recente que reuniu as principais autoridades chinesas, mas só deve ser divulgada em março. A expectativa é que fique novamente em torno de 5%. Atingir esse número será bem mais difícil agora. Primeiro, porque a base de cálculo será o resultado melhor deste ano. Segundo, porque Pequim pretende reduzir o déficit fiscal no ano que vem (a meta para o governo central é de 3%). E terceiro porque os indicadores macroeconômicos deste fim de ano vêm sendo persistentemente ruins, o que aponta um começo de ano fraco de 2024. As principais organizações internacionais preveem queda no crescimento chinês no ano que vem: o Banco Mundial, para 4,5%; o FMI, para 4,6%, e a OCDE, para 4,7%.

A série de dados recentes ruins impressiona. A alta do PIB no terceiro trimestre recuou para 4,9%, ante os 6,3% do segundo. Ao contrário do resto do mundo, o país está em deflação: os preços caíram 0,5% nos últimos 12 meses até novembro, o que indica uma fraca demanda interna. A deflação nos preços ao produtor é ainda maior, de 3% no ano. As exportações devem cair 5% em 2023. O índice SSE da bolsa de Xangai acumula queda de quase 7% neste ano e de cerca 20% em relação ao último pico, em fevereiro de 2021. As vendas no varejo e a produção industrial cresceram em novembro, mas devido a uma distorção estatística, pois novembro de 2022 foi um mês muito ruim, por causa da política de covid-zero que vigorava; numa comparação de período mais longo, tanto o consumo como a produção industrial estão caindo no ano.

Os principais problemas da economia chinesa são o colapso do setor imobiliário, que abalou vários segmentos e vem deprimindo a confiança e o consumo internos; a combinação de queda na demanda dos países ricos e de embate estratégico com o Ocidente, que estão afetando tanto as exportações como os investimentos. Nada aponta que esses obstáculos serão superados em 2024. Pelo contrário, há o risco de eles se agravarem ainda mais. Muito vai depender, então, da reação do governo chinês à desaceleração. Pequim vem falando há meses de ampliar o apoio à economia e já adotou algumas medidas, porém de impacto limitado, como oferecer linhas de crédito ao setor imobiliário. A mídia chinesa vem relatando a insatisfação do setor privado chinês com a falta de apoio efetivo. Até agora não há sinal da bazuca de gasto público que Pequim utilizou em outras ocasiões.

O governo chinês parece estar evitando uma nova rodada de investimentos, e há duas boas razões para isso. A primeira é a disparada da dívida total do país (soma da dívida pública com a dívida privada), que atingiu 272,1% do PIB em 2022 e deve superar a dívida americana neste ano. A segunda razão é que a taxa de retorno dos investimentos continua caindo, resultando em perdas bilionárias em vários setores por excesso de investimento, como destacou o professor Michael Pettis (Financial Times, 20/12). A crise no setor imobiliário chinês, que tem centenas de milhares de apartamentos não vendidos e/ou não finalizados, ilustra bem essa situação.

Num sinal de alerta quanto a essa escalada da dívida, a empresa de classificação de risco Moody’s rebaixou neste mês a perspectiva da China de estável para negativa, sinalizando um possível rebaixamento da nota de crédito do país. A Moody’s destacou a situação ruim das finanças de governos locais e empresas chinesas, que podem precisar de um maciço socorro do governo central.

Essa indefinição sobre o crescimento chinês deve perdurar em 2024, o que dificultará a estimativa de demanda de quase todas as principais commodities globais. O mundo todo, mas especialmente os principais exportadores de commodities, como o Brasil, aguarda com ansiedade as definições de política econômica de Pequim para o ano que vem.

Mínimo a preservar

Folha de S. Paulo

Valorização do piso salarial depende de reformas para se tornar sustentável

salário mínimo subirá em janeiro de R$ 1.320 para R$ 1.412 mensais, o que significará o segundo ano consecutivo de reajuste acima da inflação. Infelizmente, a política de valorização, marca de gestões petistas retomada por Luiz Inácio Lula da Silva, dificilmente será sustentável nas condições atuais.

Conforme a fórmula restabelecida, o mínimo será elevado de acordo com a inflação acumulada mais um ganho correspondente ao crescimento do Produto Interno Bruto de dois anos antes —em 2022, o IBGE apurou alta de 2,9%.

Como este 2023 deverá fechar com taxa similar de expansão econômica, já está contratado novo aumento real em 2025.

impacto dessa política no mercado do trabalho é limitado pela altíssima taxa de informalidade, que beira os 40% no país e atinge percentuais maiores justamente nas regiões mais pobres. Nos estados mais ricos, ademais, já há pisos superiores ao nacional.

Os efeitos mais líquidos e certos se dão na clientela da Previdência Social e de programas assistenciais e trabalhistas do governo federal —o que se traduz em aumento do gasto público, nem sempre com resultados sociais correspondentes.

Cumpre recordar que a estratégia de atrelar os reajustes do mínimo ao PIB vigorou entre 2007 e 2019, mas nos últimos anos deixou de proporcionar ganhos relevantes.

Isso ocorreu porque o colapso orçamentário do governo Dilma Rousseff (PT) levou a uma recessão brutal, com queda do PIB em 2015 e 2016, seguida por um quadro de lenta recuperação nos anos seguintes. O abandono dos ganhos reais fez parte dos ajustes forçados na tentativa de reequilibrar as contas.

A retomada do mecanismo ignora ainda a recente reviravolta da política social, iniciada sob Jair Bolsonaro (PL) e com o Auxílio Brasil lançado como bandeira eleitoral, que desaguou num Bolsa Família que hoje desembolsa o quádruplo de seu padrão histórico.

Se é correta a prioridade para um programa que tem foco nos estratos de fato mais carentes da população, tamanho aumento do dispêndio deveria vir acompanhado de uma revisão de ações menos eficientes no combate à pobreza.

O impacto nas contas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por exemplo, poderia ser evitado com a desvinculação entre as aposentadorias e o salário mínimo.

Sem isso, o reajuste dos benefícios, em meio à tendência de envelhecimento da população mais acentuada do que se imaginava, apressará a necessidade de uma nova reforma da Previdência.

Não será surpresa, pois, se a fórmula de valorização do piso vier a ser abandonada ou modificada em poucos anos —por decisão prudente ou imposição da realidade.

A regra do jogo

Folha de S. Paulo

Regulação de apostas é passo necessário; atividade deve sofrer tributação pesada

Apostar em loterias ou jogar em cassinos é uma forma perigosa de perder dinheiro. A chance de ganhar existe, mas é mínima —ao contrário do risco de vício. Já quem explora a jogatina, seja o Estado ou a iniciativa privada, tem a certeza matemática de que vai ganhar.

Ainda assim, não cabe ao poder público definir como cada cidadão pode gastar seus recursos, nem se mostra eficaz a estratégia da proibição. Malefícios associados ao jogo, como a lavagem de dinheiro e a ludomania, são reais, mas devem ser enfrentados com informação, restrições legais e tributação.

Por esses motivos, é racional o projeto recém-aprovado pelo Congresso que regulamenta apostas esportivas em ambiente virtual, ainda dependente da sanção do Palácio do Planalto. Ainda que possa merecer aperfeiçoamentos posteriores, o texto começa a preencher lacunas da legislação atual.

Com o advento da internet e a proliferação de cassinos virtuais sediados no exterior, o antigo veto legal ao jogo no país teve sua inoperância escancarada. Afinal, qualquer pessoa que disponha de um computador e um cartão de crédito internacional pode apostar.

Fazê-lo nem sequer configuraria delito, uma vez que a operação está fora da jurisdição brasileira.

Numa primeira tentativa de lidar com o assunto, aprovou-se em 2018 a lei 13.756, que autorizava apostas. Entretanto, por influência da bancada religiosa, o Congresso não regulamentou a matéria ao longo dos quatro anos seguintes. Com isso, o Brasil permitiu que outros países arrecadassem impostos sobre os jogos de seus cidadãos.

Não resta dúvida de que a atividade deve ser alvo de tributação muito elevada, a exemplo de produtos nocivos à saúde como bebidas alcoólicas e cigarros. Trata-se não apenas de desincentivar a prática mas também de angariar recursos para mitigar seus danos.

Nesse sentido, os parlamentares aprovaram taxação de 12% sobre a arrecadação líquida (descontados os prêmios) das empresas, abaixo dos 15% cobrados no Reino Unido, que serviu de modelo para a elaboração do projeto (o governo acabou propondo 18% para fortalecer o Ministério do Esporte).

Prevê-se ainda que as casas de apostas paguem até R$ 30 milhões pela licença para operar no país, além de alíquota de 15% sobre os ganhos de apostadores (ante 30% propostos pelo Executivo). Caberá daqui em diante verificar a adequação e a eficácia de tais cifras.

Governo sem marca

O Estado de S. Paulo

Encerrado o primeiro ano de seu terceiro mandato, Lula se limita a repetir o que fez nos mandatos anteriores, sem deixar claro o que pretende para o futuro e sem reduzir tensão política

O presidente Lula da Silva voltou ao Palácio do Planalto em 2023 sem grandes expectativas, pois afinal não se elegeu em razão de ideias novas e projetos ousados, e sim porque a rejeição ao então presidente Jair Bolsonaro provou ser maior que a sua. Sua vitória dizia mais respeito ao passado do que ao futuro: foi uma espetacular volta por cima, depois de anos de escândalos de corrupção que culminaram com sua prisão – revertida não porque sua inocência tenha sido comprovada, mas por vícios processuais – e quando ainda estava fresca na memória nacional a tragédia do governo de Dilma Rousseff, criatura de Lula. Não é pouca coisa.

Ainda assim, cobrado insistentemente durante a campanha sobre o que pretendia fazer caso fosse eleito, Lula limitou-se a dizer que estava ali, sobretudo, para “salvar a democracia”. Uma vez salva a democracia, obviamente não por méritos de Lula, e sim porque as instituições republicanas resistiram ao assalto bolsonarista, restou um governo eleito sem projeto definido.

Ao final do primeiro ano, período em que normalmente os presidente dizem a que vieram, a malaise é evidente, e mesmo em áreas nas quais o governo mostrou empenho genuíno, como na Fazenda ou nas Relações Exteriores, os resultados foram relativamente frustrantes.

Ao mesmo tempo que tratou de restaurar a imagem internacional do Brasil, transformado em orgulhoso pária por Bolsonaro, Lula não aproveitou todo o capital político que o País tem por sua natural liderança na área ambiental, preferindo meter-se em querelas nas quais a diplomacia brasileira, por mais habilidosa que seja, não tinha capacidade nenhuma de interferir. Ademais, alinhou o Brasil a blocos claramente enviesados contra o Ocidente, particularmente os EUA. O tal “Sul Global” de que Lula tanto fala nada mais é do que o nome fantasia do quintal chinês, onde o Brasil é mero vassalo dos interesses de Pequim.

Na Fazenda, destaque-se, por justiça, o trabalho do ministro Fernando Haddad, que em vários momentos conseguiu dobrar um Congresso fortemente hostil ao PT, ajudando a encaminhar a reforma tributária. E mostrou sangue-frio ao enfrentar o “fogo amigo” do próprio PT e do presidente. Ou seja, Haddad fez da Fazenda uma ilha de bom senso cercada de tubarões petistas por todos os lados, mas há dúvidas razoáveis sobre sua capacidade de resistir a esse cerco por mais três anos, nos quais haverá duas eleições – e todos sabem o que os governos petistas são capazes de fazer para vencê-las.

Lula retornou ao poder embevecido pela própria glória, com a autodeclarada aura de ser uma “ideia” – para usar a expressão com que se definiu no discurso que fez antes de ir para a prisão, em abril de 2018. O petista segue a cartilha dos líderes que só conseguem enxergar as próprias virtudes, e não raro transfere para ministros a responsabilidade pela ausência de grandes feitos. Ele ainda parece trabalhar como se tivesse ganhado a eleição muito mais para impedir que Bolsonaro vencesse do que para governar. Sobram-lhe planos, retóricas e simbologias. Faltam-lhe projetos compatíveis com os desafios de um Brasil hoje distante de 2002 ou de 2010.

Num país que saiu das urnas cindido, Lula tinha o dever de articular um processo de união e de reconstrução nacional, como, aliás, prometeu. Mas, fiel à sua natureza sindical, optou por continuar a ser uma fonte permanente de divisões. É cansativo.

Mas ano novo é tempo de esperança, então não custa nada esperar que Lula demonstre que não venceu a eleição só para desmoralizar o juiz que mandou prendê-lo. O tempo é para o atual governo tanto um apoio quanto ameaça. Drummond chamou de genial “quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano”. Ao fazer isso, disse, “industrializou a esperança”, pois 12 meses são suficientes para cansar qualquer ser humano. Mas aí, lembra Drummond, “entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez (...) com outra vontade de acreditar que daqui pra adiante vai ser diferente”. Nada mais longe da poesia do que a política, mas Lula conhece não só o poder da esperança, como também a força demolidora do desencanto.

O problema da ‘agrodependência’

O Estado de S. Paulo

Após vigor extraordinário e a supersafra de 2023, agro inicia 2024 castigado por enchentes no Sul e seca no Centro-Oeste; economia precisa urgente de plano B para manter crescimento

O ano excepcional da agricultura brasileira vai garantir para 2023 um crescimento econômico em torno de 3%, como preveem analistas econômicos. Resultado razoável para um ano de cenário mundial crítico, marcado por guerras, catástrofes climáticas e comportamento inflacionário de difícil controle. O vigor do agronegócio foi mais do que um alívio: foi a salvação do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023. A questão é que, durante todo o ano, nenhum novo caminho foi efetivamente aberto para reduzir a “agrodependência” da economia brasileira. E aí começa o problema de 2024.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou recentemente o segundo prognóstico da produção agrícola para a safra do ano que vem. Estima-se em 306,2 milhões de toneladas, um recuo de 2,3% (menos 10,1 milhões de toneladas) em relação à supersafra de 2023, resultado que pode piorar especialmente por causa de adversidades climáticas. Ao que tudo indica, o notável crescimento de 20,2% conquistado neste ano será um recorde difícil de ser batido, ao menos no curto prazo.

Como mostrou o Broadcast/Estadão, o gerente do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola (LSPA) do IBGE, Carlos Barradas, explicou que, com os prejuízos causados pelas enchentes no Sul do País e a seca no Centro-Oeste, a produção de 2024 começou mal. “Vamos ver se a gente reverte”, disse, refletindo a torcida que é de todo o País.

A grande questão é que a economia não pode ficar à mercê da sorte. É urgente um plano B para suprir eventuais percalços do agronegócio, que cresce por méritos inegáveis, especialmente no que se refere a investimentos em pesquisa e tecnologia e também em sustentabilidade. Porém, o setor está sujeito a diversos fatores alheios a sua vontade, como clima, preços internacionais das commodities, comportamento da economia em países importadores da produção brasileira, guerras e pandemias. Qualquer tropeço e lá se vai uma expectativa antes promissora.

Por isso, o bom desempenho do agro deveria ser o diferencial brasileiro, não a sua base de sustentação. O ano de 2023 passou sem que alguma medida concreta fosse instituída em direção à revolução da “neoindustrialização” prometida pelo presidente Lula da Silva e por seu vice, Geraldo Alckmin, em artigo publicado em maio no Estadão. Naquele texto, viam-se sinais de disposição do governo em apostar, enfim, na capacidade produtiva nacional de forma efetiva, planejada e contínua. De lá para cá, contudo, quase nada aconteceu – e o que aconteceu foi decepcionante, como o velho incentivo à compra de carros, que nem sequer mudou de patamar a indústria automotiva.

A visão deturpada de que o incentivo ao consumo resolve tudo é o que faz do País um prisioneiro de políticas mal elaboradas e de curto prazo que, quando muito, causam soluços de crescimento e voos de galinha. Sem incentivos sólidos ao investimento, público e privado, a economia continuará fragilizada, com resultados tímidos que só com muito boa vontade podem ser classificados como crescimento. E quando se fala em investimento, não é gasto puro e simples, como parece ser a visão governamental, e sim dinheiro aplicado em maquinário, programas de capacitação, desenvolvimento tecnológico e tudo o mais que confere sustentabilidade ao crescimento.

A taxa de investimento brasileira – conhecida pela rubrica FBCF, formação bruta de capital fixo – está atualmente em 16,6%. Esta é a fração do PIB nacional aplicada em projetos para gerar mais riqueza. Muito pouco. Nos países emergentes a média gira em torno de 30%. Há um consenso entre economistas que o País necessita de, ao menos, 25% por no mínimo uma década para crescer, de forma sustentada, em torno de 4% ao ano. Estamos longe dessa média decenal. De acordo com os dados do IBGE, o máximo foi nas décadas de 1970 e 1980, com a média de 21,9%. De lá pra cá, ladeira abaixo.

O crescimento econômico de longo prazo não depende de gambiarras. A solução é um planejamento sério e a tão necessária política industrial.

Normalização institucional

O Estado de S. Paulo

Após anos de confusão de papéis, os militares afinal são chamados para tratar só de temas militares

O País começa a entrar no eixo da normalidade institucional. É notável que, de uns tempos para cá, quando se ouve falar das Forças Armadas, o que está em pauta são questões, ora vejam, afeitas à caserna. É o caso, por exemplo, da movimentação de tropas e equipamentos para Roraima, a fim de proteger o território nacional, haja vista a crise fronteiriça entre a Venezuela e a Guiana.

Para este jornal, é um tanto constrangedor ter de apontar o óbvio à luz da Constituição de 1988. Na Lei Maior estão muito bem delineados os papéis e responsabilidades de civis e militares na ordem institucional pós-ditadura. Aos militares da ativa não cabe, sob nenhuma hipótese, imiscuir-se em questões políticas. O poder político é civil, ao qual as Forças Armadas estão submetidas na figura de seu comandante em chefe, o presidente da República. Os militares não têm qualquer ingerência sobre tudo o que extrapola a defesa nacional.

Por mais evidente que isso fosse, criou-se deliberadamente uma confusão no País, que contaminou por anos o debate público, acerca da atuação das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito. A barafunda, como se sabe, foi urdida e estimulada pelo então presidente Jair Bolsonaro, que saiu do Exército em desonra para, décadas depois, transformar as Forças Armadas, particularmente a Força Terrestre, num instrumento de governo – ou, pior, numa espécie de guarda pretoriana com a qual ameaçou a Nação não poucas vezes.

A bem do País, isso parece superado. “Olhando para trás, vejo muitos obstáculos e dificuldades que se interpuseram em nosso caminho. Mas vejo, também, muito empenho, trabalho, obstinação e entregas à sociedade”, disse o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante a confraternização de fim de ano entre o presidente Lula da Silva e os comandantes das três Forças.

Como noticiou o Estadão, o almoço transcorreu em clima festivo e cordial. São conhecidas as diferenças entre Lula e os militares. O presidente, vale lembrar, assumiu o terceiro mandato sob uma atmosfera de desconfiança mútua entre governo e caserna, justamente pelo passado de associação direta entre alguns oficiais e o então presidente Bolsonaro. A rigor, para o País pouco importa se Lula gosta dos militares ou se estes nutrem simpatia pelo presidente. O que é mandatório é que cada um respeite sua posição institucional e aja de acordo com a Constituição.

Evidentemente, não seria no intervalo de um ano que o esforço para dissociar as Forças Armadas do bolsonarismo haveria de ser esgotado. Mas a confraternização vale por seu aspecto simbólico. Ela sintetiza, afinal, o que o País tem visto: os militares, em geral, deixaram as páginas de política dos jornais para serem lembrados por suas atribuições específicas. Que assim continue.

O mais importante a ser destacado é que o compromisso das Forças Armadas com o Estado Democrático de Direito não depende do humor de seus comandantes nem dos sentimentos do presidente da República. Trata-se de um dever constitucional – com o qual todos esses atores parecem estar de acordo.

Feminicídio exige respostas complexas

Correio Braziliense

Frear essa chaga social vai além de projetos direcionados apenas aos personagens diretos dos crimes. Há que se considerar — e, principalmente, estruturar — ações de maior amplitude

Uma das principais medidas indicadas para evitar os casos de feminicídio é sensibilizar as mulheres a procurarem as autoridades de segurança já nos primeiros sinais de violência. Uma atitude importante. Não suficiente. Há, inclusive, o risco de o pedido de ajuda acirrar a ira do abusador, avalia, em entrevista ao Correio, o promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) Daniel Bernoulli. A mesma lógica pode se repetir quando a denúncia parte de parentes e vizinhos, também recorrentemente mobilizados para não se calarem diante desses casos de violência.

Outro caminho comumente indicado é acirrar a resposta aos criminosos. Solução que, por si só, também não ameniza essa dramática realidade. No último domingo (24/12), o presidente do Tribunal de Justiça do DF, desembargador José Cruz Macedo, assegurou, também ao Correio, que, naquele momento, "todos os autores de feminicídio em Brasília estavam presos ou mortos". Em menos de 48 horas, foram registrados dois novos assassinatos de mulheres cujos suspeitos são homens que elas tinham ou tiveram algum tipo de relacionamento.

Ao comentar os crimes mais recentes, Bernoulli relatou que, quando o MPDFT inicia um processo penal de feminicídio, inclui qualificadoras que aumentam "consideravelmente as punições a esses assassinos, em casos de condenação". Não há "qualquer tolerância", enfatizou o promotor. Ainda assim, as mortes não param de crescer no DF e no resto do país.

Se confirmados como feminicídios, os dois últimos casos farão com que a capital do país feche o ano amargando o dobro de assassinatos do tipo, considerando os 17 registros feitos pela Secretaria de Segurança Pública em 2022. No primeiro semestre deste ano, o Brasil registrou 722 feminicídios, o maior número para um primeiro semestre contabilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2019, no início da série histórica, foram 631 casos.

Frear essa chaga social, portanto, vai além de projetos direcionados apenas aos personagens diretos dos crimes: vítima, família e agentes do governo, como profissionais da segurança e da Justiça. Essas são, indiscutivelmente, medidas importantes de combate à violência contra a mulher. Porém, há que se considerar — e, principalmente, estruturar — ações de maior amplitude, como a formação de uma sociedade que compreenda o feminicídio como um ato de horror e atrocidade.

Para vítimas e familiares, já o é. Para muitos criminosos, não. Um dos sinais dessa visão deturpada é o entendimento dado aos femicídios nos presídios brasileiros, avalia Cruz Macedo. Presos "agridem autores de crimes sexuais, que precisam ficar separados". Não têm a mesma reação com os condenados por feminicídio, o que, na avaliação do desembargador, indica que a naturalização da violência contra a mulher acontece em decorrência do machismo. Vale lembrar que, neste ano, o governo Lula não concedeu o indulto de Natal a apenados por agressão ou morte de suas companheiras. Não há, porém, a mesma conduta em saidões de presos em outras épocas festivas.

O presidente do TJDFT sugere como mais uma medida de combate ao feminicídio a adoção de campanhas que mostrem "a situação real desses crimes", como ficam os autores, as mulheres e os órfãos. Mobilizar escolas e famílias para a construção de uma cultura de paz e tolerância também é um caminho com efeito a longo prazo. Igrejas e outros grupos de convivência podem, e devem, impulsionar esses valores. Assim como os produtores de conteúdo, tanto profissionais quanto amadores, que retratam e ajudam a construir a forma como percebemos as diferenças de gênero e lidamos com elas. A lista de respostas é longa e complexa. Mas, mais do que nunca, urgente e necessária.

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