sexta-feira, 14 de março de 2025

Calçando as meias - Simon Schwartzman

O Estado de S. Paulo

No médio e longo prazos, para atrair talentos para o ensino, será necessário oferecer melhores salários e mais oportunidades de progressão

Além da meia-entrada, somos também o País das bolsas e, agora, do Pé-de-Meia. 54 milhões recebem o Bolsa Família, o programa Pé-deMeia para o ensino médio distribuiu, em 2024, cerca de 4 milhões de benefícios, a um custo aproximado de R$ 12 bilhões, e, recentemente, o Ministério da Educação lançou programa similar para alunos dos cursos de licenciatura, de formação de professores. A novidade é que parte do dinheiro fica acumulada para só ser entregue a quem termina o curso. Postas as duas meias, quem sabe a educação brasileira agora andará melhor?

Nada contra dar algum dinheiro a quem tem pouco, sobretudo quando se gasta tanto com coisas inúteis. Mas, além do impacto fiscal, é preciso também ver se os programas cumprem seus objetivos. Num artigo anterior, eu disse duvidar de que o Pé-de-Meia para o ensino médio teria o efeito esperado de reduzir a evasão escolar e melhorar o desempenho estudantil. A evasão se dá, sobretudo, quando jovens mais pobres, da rede pública, chegam aos 18 anos e já ficaram para trás, sem entender nem se motivar pelo que é ensinado, e não veem perspectiva na corrida de obstáculos que é concluir o ensino médio tradicional, fazer o Enem e tentar entrar numa faculdade. Não me parecia, e continuo duvidando, que R$ 200 por mês e um bônus ao fim do curso vão alterar muito essa realidade. O que precisaria ser feito, e ficou pelo caminho, seria uma reforma aprofundada no ensino médio, criando alternativas efetivas de formação geral e profissional.

O novo Pé-de-Meia parte da constatação de que, nos países em que a educação é de qualidade, os professores são recrutados no terço superior dos que passam pelos diferentes sistemas de avaliação. No Brasil, seriam os que conseguem 700 pontos ou mais na média do Enem e optam por cursos em universidades públicas que, além de gratuitos, garantem uma boa renda – entre R$ 5 mil e R$ 10 mil por mês para engenheiros, R$ 13 mil e R$ 18 mil para médicos, R$ 8 mil para advogados. Para os que não conseguem, sobretudo mulheres mais pobres vindas de escolas públicas, uma opção são os cursos de licenciatura para ensinar na educação básica, em que o rendimento varia de R$ 4 mil a R$ 5 mil mensais.

O programa pretende lidar com isso oferecendo uma bolsa de R$ 1 mil por mês para quem consegue mais de 650 pontos no Enem, opta por um curso de licenciatura presencial e se compromete a trabalhar por cinco anos na rede pública. Candidatos que conseguem atingir essa nota – menos de 5% dos milhões que fazem o Enem a cada ano – tendem a vir de famílias de renda mais alta, os pais têm diplomas universitários, e estudaram em escolas particulares. Uma dúvida é se este estímulo seria suficiente para convencer essas pessoas a optar por uma carreira cujo rendimento é, ao longo da vida, metade ou menos do que outras que também estão a seu alcance. Outra dúvida é se o número de pessoas optando por essa bolsa faria alguma diferença. Segundo o Ministério da Educação (MEC), as universidades públicas estão oferecendo, este ano, 69 mil vagas para licenciaturas, com 310 mil inscritos, dos quais 19.339 tinham nota igual ou superior a 650 pontos no Enem (lembrando que cada candidato pode se candidatar a dois cursos diferentes). Uma gota d’água, comparado com 2,2 milhões de professores de educação básica no País, e 1,2 milhão de estudantes matriculados em licenciaturas no setor privado sem precisar passar pelo Enem.

Não há solução fácil para o problema da má qualificação dos professores, que não tem a ver somente com a má qualidade dos cursos de licenciatura, se são presenciais ou à distância, mas sobretudo com a bagagem precária com que a grande maioria chega ao ensino superior. Por muitos anos mais, estes serão os professores que teremos. Além de melhorar a qualidade dos cursos de formação, é preciso reforçar os processos de seleção e mentoria de novos contratados e apoiar a todos com supervisão apropriada, materiais didáticos e protocolos de ensino que garantam que seus estudantes terão interesse e aprenderão o que precisam. São práticas conhecidas que só dependem de determinação para ser adotadas.

No médio e longo prazos, para atrair talentos para o ensino, será necessário oferecer melhores salários e mais oportunidades de progressão. Com menos crianças nascendo, já é possível reduzir o número de turmas e pagar mais a menos professores. Será necessário também abrir a carreira, criando diferentes portas de entrada e saída, e não somente as licenciaturas tradicionais, sobretudo para professores de matérias específicas no fundamental II e no ensino médio, e de cursos de formação profissional. Com processos mais rápidos e práticos de qualificação e supervisão pedagógica, é possível atrair pessoas que dificilmente escolheriam passar a vida como professores da educação básica, mas que teriam interesse em ensinar como parte ou etapa de uma vida profissional mais ampla, e seriam exemplos e modelos para seus alunos. Médicos ensinando biologia, engenheiros ensinando computação, economistas ensinando estatística, técnicos ensinando a lidar com equipamentos.

Tudo isso, no entanto, é muito mais difícil e complicado do que, simplesmente, botar mais um dinheiro no pé-de-meia, que pode não dar certo, mas muita gente gosta.

 

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