sexta-feira, 14 de março de 2025

Congresso dobra a aposta - Vera Magalhães

O Globo

O negócio das emendas é, hoje, condição de vida e morte para os congressistas, da esquerda à direita

A relação entre Poderes da República não deveria comportar molecagem, mas é difícil encontrar outro nome para classificar a resolução costurada na surdina e aprovada a toque de caixa pelo Congresso que tenta, pela terceira ou quarta vez, driblar as determinações do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de dar transparência e rastreabilidade às emendas orçamentárias.

O grau de apego e a insistência bizarra de deputados e senadores em manter algum grau de sigilo sobre a liberação de dinheiro público só escancara quanto esta se tornou, antes de tudo, uma maneira de políticos se perpetuarem em mandatos e expandirem seu poder sobre prefeitos, empresas e eleitorado, num ciclo perverso que eles não querem ver quebrado.

Basta lembrar que a tentativa de moralizar as emendas começou (já tarde) com a ministra Rosa Weber, lá atrás, em 2022. Desde então, houve seguidas idas e vindas para algo que não é um capricho do Supremo Tribunal Federal, mas apenas e tão somente o Judiciário cumprindo aquilo que manda a Constituição em relação ao Orçamento da União.

O último lance, com a aprovação de uma resolução que permite que apenas os líderes chancelem indicação das emendas de comissão, permitindo que parlamentares permaneçam incógnitos, tem um teor de afronta ainda maior que os anteriores, porque Hugo Motta e Davi Alcolumbre acabaram de assumir o comando da Câmara e do Senado, foram até o ministro Flávio Dino, se comprometeram com um acordo para, apenas poucas semanas depois, orquestrarem a tentativa de driblá-lo.

É óbvio que, diante da já esperada manifestação do PSOL, autor de uma das ações que questionam o trâmite das emendas, Dino voltará à carga, provavelmente sustando novamente o pagamento das emendas até que a nova diabrura dos senhores parlamentares seja desfeita.

Não adiantará de nada os deputados e senadores apontarem intervenção indevida do ministro, conluio com o governo ou o que quer que seja. O assunto já teve diversos rounds, todo mundo sabe o que está posto à mesa, e a resolução com a brecha marota para o sigilo foi urdida propositalmente nos últimos dias, diante da inação por parte do governo, que reconhece sua própria tibieza na relação com o Legislativo e deu a batalha por perdida. É o que explica a votação da proposta com apoio maciço de quase todos os partidos, inclusive do PT.

Uma segunda manobra que passou relativamente despercebida na votação da resolução prorrogou a atual composição da Comissão Mista de Orçamento até que seja votada a proposta orçamentária deste ano, que segue travada. Com isso, a cúpula do Parlamento mostra que a ideia é manter o Orçamento deste ano como refém até que seja encerrada a novela em torno das emendas — que, como se vê, terá mais um capítulo agora.

Caso a proposta não seja votada na semana que vem, estará alcançado o recorde de atraso na aprovação do Orçamento, um indicativo inquestionável da forma como a agenda de interesse do país está subordinada aos interesses dos congressistas e de quanto o negócio das emendas é, hoje, condição de vida e morte para eles, da esquerda à direita, com a exceção apenas dos nanicos PSOL e Novo, cada um numa ponta do espectro político.

Lula disse na campanha que acabaria com o orçamento secreto, mas rompeu a promessa já antes da posse, quando pactuou a votação da PEC da Transição e o apoio à reeleição de Arthur Lira. Há dúvida razoável quanto ao grau de afinação entre ele e Dino na tentativa de disciplinar aquilo de que deputados e senadores se recusam a abrir mão.

Mas fica nítida a falta de voz e de pulso do Executivo em exigir que a destinação de recursos públicos por parte do Legislativo seja moralizada. A ousadia do Congresso em dobrar a aposta mostra que o negócio é tão lucrativo que a briga compensa.

 

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