Valor Econômico
O maestro, que lança sua autobiografia, é
filho e protagonista de um momento historicamente revolucionário da cultura
brasileira
As memórias do maestro Júlio Medaglia, “Vim, vi e regi” (Global Editora), constituem uma dessas exceções nas autobiografias, em que o autor não narra propriamente como protagonista, mas como personagem testemunhal do campo cultural. No caso, o da música, em que se destaca como maestro, compositor, arranjador e intérprete. E, também, como escritor, ensaísta e teórico das rupturas e inovações em sua área de conhecimento. Ele viu o inaparente, o apenas indicial do novo que estava nascendo.
Medaglia é vários e muitos no único.
Expressão intensa de um momento histórico impregnado de possibilidades e
desafios à intelectualidade de sua época. Os geralmente poucos de prontidão
para situar e compreender que o que fora deixava de ser. Novas formas de
expressão estavam potencialmente contidas e reveladas nas incertezas culturais
de um momento de transição histórica.
Júlio Medaglia é filho e protagonista de um
momento historicamente revolucionário da cultura brasileira, o momento em que a
cultura se libertou das condições sociais de certezas arraigadas, cópia da
Europa culta de certa época.
O café comprava tudo. O pai de Tarsila do
Amaral, fazendeiro de mais de 20 fazendas, numa das quais morava, tomava sopa
francesa de vegetais liofilizados, em vez de uma sopinha caipira, de vegetais
da horta próxima do terreiro.
Numa tentativa de inovação, a Semana de Arte
Moderna de 1922 ficara no meio do caminho de uma insurreição de revisão
cultural que levasse às últimas consequências as inovações que propunha.
O momento de Júlio Medaglia e daqueles poucos
a que se juntou, dos anos 1960 aos 1980, foi um momento de busca social de
novos autores, novos criadores de cultura, para que por meio deles as novas
necessidades expressionais, como as define Antonio Candido, se traduzissem em
obras e ações que dessem forma ao novo que nascia.
Era o momento em que o Brasil completava o
ciclo de transição de um país agrário-exportador, voltado para fora, como o
definiu Celso Furtado, para um país de economia voltada para dentro, para o
mercado interno. E para a criação das condições de superação de seu atraso
social, econômico e cultural pela transformação de quem trabalha e produz
também em quem consome e pensa.
A indústria brasileira passava por uma
revolução no processo de trabalho. Surgia uma nova classe operária, marcada por
novas necessidades e novas possibilidades. O novo operário já não podia ser o
da manufatura e do artesanato. Tampouco podia ser o da dominação clientelista e
populista do Ministério do Trabalho. Acabará sendo o operário de alta
qualificação e da mesa de negociação. O operário protagonista de sua própria
história. Não mais o operário de importação ideológica dos medos e da incultura
das elites e do Exército, do anacronismo interpretativo das fantasias
reacionárias do golpe de 1964.
O conflito social próprio da modernização foi
“lido” pelos militares incultos como aquilo que não era. A modernidade
tornara-se de compreensão meramente repressiva, obsoleta.
A cultura ganhou um campo de desafios,
interpretativos e criativos, na demanda por uma consciência social que fosse a
das necessidades expressionais do novo momento histórico. Os militares e seus
aliados quiseram um país culturalmente retrógrado, quando era um país em busca
do possível. Poucos compreenderam o que acontecia.
As próprias esquerdas tinham dificuldade para
identificar e compreender o possível contido nas contradições da sociedade que
nascia.
Na cultura, Júlio Medaglia compreendeu o
momento de maneira criativa, como se lê nos diferentes momentos de sua
narrativa autobiográfica. E compreendeu porque de fato sabia que eram rupturas
culturalmente inovadoras as que surgiam. O possível pedia mais do que espanto,
pedia a revolução de uma práxis de libertação e superação das formas de pensar.
Medaglia aprofundou suas relações com o grupo
concretista, o de Luiz Sacilotto, operário do ABC, pintor e escultor;
signatário do Manifesto Concretista; o dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e
Décio Pignatari na poesia, que dominavam todas as artes.
A música desafina na Bossa Nova, desconstrói
no tropicalismo, do qual Medaglia foi reconhecidamente coadjuvante e coautor.
Numa erudita carta de seis páginas a seu amigo Caetano Veloso, uma verdadeira
conferência, o maestro destaca que não se tratava apenas de música popular, mas
de música universal. Ele testemunhara a recepção de ambas nos meios eruditos da
música no mundo.
Medaglia desenvolveu uma teoria da forma na
música, a revolução, ele poderia ter dito, não é o “abaixo a ditadura” do
comício, mas a quebra das formas de expressão que subjugam a consciência
social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário