Correio Braziliense
Saudemos os 40 anos que comemoramos, da volta
da democracia, da liberdade, que não morreu em minhas mãos; ao contrário,
floresceu e consolidou-se
A memória não retém o momento, o clima, a
emoção. Amanhã, 15 de março de 2025, é apenas uma data, fonte de tantos
julgamentos e versões. O tempo é uma invenção do homem, e as datas redondas nos
seduzem a construir o passado. Esta representa 40 anos de democracia, que se
inicia com a minha posse no cargo de presidente da República, encerrando o
regime militar.
Na história do Brasil tivemos momentos de grandes inflexões. Mas aquela data será julgada no futuro como um instante em que a história se contorcia. Ela é o fim de um período marcado por revoluções, golpes de Estado, militarismo — que é agregação de poder político ao poder militar —, e agora a data da continuidade de uma democracia de massa, que o país jamais conhecera. Um Estado Social de Direito, o exercício pleno da cidadania, das liberdades individuais e dos direitos sociais.
Hoje não se pode avaliar o que estava em jogo
naquela noite de 14 para 15 de março de 1985. A nove horas de tomar posse, o
presidente eleito, Tancredo Neves, começava a ser operado no Hospital de Base
de Brasília. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua agonia.
A realidade imitava a ficção. O país atônito.
Os políticos envoltos em perplexidades não tinham nenhum grupo mobilizado.
Reuniam-se improvisadamente na Câmara e no Senado. Os jantares organizados para
antecipação da festa se transformavam em desorientação e tristeza. O ministro
do Exército do Figueiredo comunicava ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu,
que iria voltar ao seu posto de comando e desencadear uma ação para interromper
o longo processo da transição.
No meio de tudo isso, dois homens aparecem,
mostram grande espírito público e capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães
e Leônidas Gonçalves. Tancredo estava fora de ação, imobilizado por grave
doença.
Quando, tomado de profunda emoção e saindo de
uma depressão que escondi do país durante vários meses, voltado totalmente para
o problema humano de Tancredo, disse a Ulysses que não desejava assumir
sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua fibra de grande chefe, me disse:
"Não é hora de sentimentalismos, Sarney. Temos deveres com a nação. Um
processo tão longo de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas
indecisões".
O general Leônidas, já escolhido ministro do
Exército, partiu para ações concretas: "Vamos ao Leitão de Abreu, não para
discutir a sucessão, mas para dizer que amanhã, às 10 horas, o vice-presidente,
conforme determina a Constituição, irá prestar juramento perante o Congresso e
assumir a Presidência até o restabelecimento de Tancredo".
E assim fez, em companhia de Ulysses e dos
senadores José Fragelli, presidente do Congresso, e Fernando Henrique Cardoso.
As mesas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo Tribunal
Federal, convocado secretamente pelo presidente Cordeiro Guerra, deliberou que
esse era o caminho da Constituição.
Quando me comunicaram as conclusões, às três
horas da manhã, eu era um homem batido pelo imprevisto. Tomei posse "com
os olhos de ontem" e enfrentei o desconhecido dos anos que estavam à
frente.
Há mais de 10 anos, o brasilianista Ronald
Schneider, que estudou as transições democráticas, escreveu que a transição do
Brasil foi a mais exitosa.
Iniciou-se a Nova República com o lema
"Tudo pelo social". Enfrentei 12 mil greves, convoquei a
Constituinte, implantamos uma democracia social, rompemos com a ortodoxia
econômica com o Plano Cruzado, alcançamos a mais baixa taxa média de desemprego
de nossa história — 3,59%. Até hoje não se repetiu o crescimento econômico
daqueles anos.
Relembro, nesta data, Tancredo Neves. Afonso
Arinos, repito, disse: "Muitos deram a vida pelo país, mas Tancredo é o
único que deu a sua morte pelo Brasil".
Essa é a história destes 40 anos de paz
social, de alternância de poder e da presença do proletariado nas decisões
nacionais. A República, nos seus 136 anos, pode contar com cidadãos de todos os
segmentos da sociedade para ocupar a Presidência, desde marechais até um
operário retirante das secas do sofrido Nordeste.
O destino entregou-me a responsabilidade de
fazer a transição democrática depois de um longo período de autoritarismo.
Enfrentei ameaças de retrocessos, mas conseguimos avançar no social: criamos o
SUDS, hoje SUS, universalizamos a saúde, criamos o Mercosul, com Raúl Alfonsín,
da Argentina, e acabamos com a disputa nuclear entre nossos dois países e
somos, graças a essa união, o único continente do mundo sem armas nucleares.
As instituições no país são tão fortes que
resistiram a dois impeachments e à tentativa de destruí-las, com o processo
agora em julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Saudemos os 40 anos que comemoramos, da volta
da democracia, da liberdade, que não morreu em minhas mãos; ao contrário,
floresceu e consolidou-se.
Brasil, minha pátria, meu torrão. País de
hoje e do futuro.
*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
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