Malandragem,
de 1949, é uma das mais evocativas fotografias de German Lorca, feita num
botequim da esquina da Rua Almirante Barroso com a Rua Bresser, no bairro do
Brás. Ele, já casado, morava quase ao lado. Debruçava-se na janela de sua casa,
à noite, com a esposa, para ouvir Nelson Gonçalves. O cantor havia morado na
Almirante Barroso, antes de mudar para o Rio. Ocasionalmente, voltava para
visitar o barbeiro, ali vizinho, de quem fora cliente e era amigo. Ia para o
boteco bater papo e deixava-se ficar. Então, a pedidos, soltava a voz:
"Boemia, aqui me tens de regresso... (...) Voltei para rever os amigos,
que um dia eu deixei a chorar..."
Fui
rever Malandragem na retrospectiva da obra de Lorca em preto e branco, que se
realiza no Museu de Arte Moderna, no Ibirapuera, até 27 de maio. Embora a
mostra reúna fotos feitas em diversas localidades e até fora do Brasil, a
cidade de São Paulo é a grande personagem do imaginário poético e afetivo de
Lorca. Se em algumas vezes ele cria a situação que lhe permita fotografar na
perspectiva do que para Henri Cartier Bresson é o momento decisivo, a armadilha
visual para capturar o sujeito da imagem, em outras ele faz expressivas
fotografias de um repórter, que se deixa capturar pelo momento decisivo que o
chama. Lorca é o mestre da estética da imaginação e da oportunidade.
Justamente, Revolta dos passageiros, de 1947, é a foto de um inesperado bonde
em chamas, cercado pelos bombeiros, nas proximidades do Gasômetro. Lorca
trabalhava no centro da cidade. Ao ver a fumaça, saiu correndo pela Rangel
Pestana abaixo para fazer em tempo uma das mais notáveis fotografias de rua de
São Paulo, na moldura esfumaçada do protesto popular. A mesma prontidão de
Cortiço no Brás, na ternura de um garotinho descalço que olha para o lado, atraído
pela presença do inesperado fotógrafo.
O
olhar de Lorca passeia pelas ruas, na preferência pelos dias de chuva, os olhos
postos no reflexo das poças d'água, do pedestre tão urbano. E, quando se ergue,
retém as linhas retas invasivas e frias, como em Fábrica de asfalto e Telhados.
Ele explora com sensibilidade a janela de sua casa, no Brás, em dias de sol e
dias de chuva. Garimpa as criações dos reflexos, as deformações eloquentes em
detalhes, como em Reflexo na janela. O confinamento doméstico nas horas de
descanso empurra o inquieto artista na direção da busca de tesouros visuais em
minúcias que só ele pode ver. Inquieto até hoje, nos seus belos e monumentais
90 anos de idade, que discorre com uma memória invejável sobre os momentos e
inspirações de cada uma de suas fotos.
Lorca
mantém viva a tradição modernista, inventiva e criativa do Foto Cine Clube
Bandeirante, de que foi destacado membro na mesma geração de Thomas Farkas e de
Geraldo de Barros.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/
CIDADES, 23/4/2012
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