A estrela da 68ª Assembleia
Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol)
deveria ser o jornalista Juan Luis Cebrián, fundador do El País – jornal-modelo, jornal dos sonhos – e hoje
presidente da empresa que o edita. Carismático, culto, autor de uma das últimas
façanhas do “jornalismo romântico”, sua intervenção era aguardada com curiosidade
porque na semana anterior o esplêndido diário espanhol anunciara um drástico
corte de despesas e a demissão de um terço dos seus jornalistas.
Pelo noticiário dos
jornalões brasileiros depreende-se que a intervenção de Cebrián teria sido
convencional como atesta a titulação das matérias publicadas no domingo, 14/10:
“Ainda não há resposta para
o futuro do jornalismo” (Folha de S.Paulo)
“Saída para os desafios é
‘saber como mudar’” (Estado de S.Paulo)
O Globo nada encontrou na fala que merecesse um título,
significativamente engavetou num pequeno box os planos de investimento da Prisa
(empresa que edita o El País) na América
Latina.
Mas no jornal que Cebrián
fundou há 37 anos seus companheiros encontraram um compromisso que escapou aos
coleguinhas brasileiros: “Morrerei fazendo jornais de papel”. A frase completa
é ainda mais taxativa, significativa, emocionante: “Há 50 anos faço jornais de
papel e morrerei fazendo jornais de papel”.
Palavra
mágica. Evidentemente, não houve uma
conspiração dos anfitriões para abafar a fala do celebrado hóspede espanhol –
jornalista profissional, brilhante teorizador, escritor, socialdemocrata
ostensivo e, principalmente, futuro concorrente. A omissão deve ser atribuída à
proverbial desarticulação das redações na tarde dos sábados e no meio de um fim
de semana prolongado.
A gafe serve como gancho
para remontar aos primórdios da SIP esquecidos em meio à febril cobertura desta
68ª Assembleia Geral. A informação da Wikipedia sobre a entidade é incompleta:
a sua criação em Havana, em 1943, deveu-se a uma resolução do Congresso
Pan-Americano de Periodistas (=Jornalistas) realizado no ano anterior na Cidade
do México.
Erroneamente denominado como
“primeiro”, foi na verdade o segundo – o conclave precursor aconteceu 16 anos
antes, em 1926, em Washington DC. Ambos concebidos como congressos de
jornalistas. As empresas jornalísticas ainda não ostentavam pedigree nem poder,
ao contrário dos jornalistas que as dirigiam.
Conferências posteriores
(Caracas, Bogotá e Quito), com a intenção de alargar o escopo da entidade,
deram-lhe os atuais nome e configuração. Além de alijados, os jornalistas foram
esquecidos e a entidade tornou-se um clube exclusivamente empresarial
frequentado não apenas pelos donos de jornais & cônjuges, mas também pelos
ágeis fornecedores de equipamento (linotipos, impressoras) e papel-jornal
(papeleiras americanas, canadenses e escandinavas).
A americana Hoe, produtora
das impressoras letterpress, era a mais
ativa nos bastidores da SIP, o que levou grandes empresas jornalísticas – como
o Jornal do
Brasil e o Estado de S.Paulo – a fazerem a aposta errada quando o sistema off-set da alemã Mann mostrou-se mais eficiente e
consagrou-se como definitivo.
Nos anos 1950 e 60 era
pequeno o número de sócios brasileiros, menor ainda o de norte-americanos,
razão pela qual a Sociedad Interamericana de Prensa ficou conhecida apenas pelo
acrônimo em espanhol, SIP (embora no brasão constem a sigla brasileira, SII, e
inglesa, IAPA).
A transformação de Miami
numa espécie de “Cuba Libre” e sua excepcional localização geográfica deram-lhe
uma inegável condição latino-americana. Lá se instalou a SIP acompanhada pelo
séquito de consultorias que vendem de tudo, inclusive “inovação”, palavra
mágica para ouvidos subdesenvolvidos. E com ela vieram os evangelizadores da
Universidade de Navarra e do Opus Dei.
Distração
coletiva. O diário El País é na Espanha um aguerrido defensor do laicismo,
notório adversário do Opus Dei. Sua escola de jornalismo, associada à UAM
(Universidad Autónoma de Madrid), uma das melhores da Europa, situa-se no
extremo oposto do navarrismo.
Maior jornal espanhol e um
dos melhores do mundo, não endeusa os infográficos, cultiva a palavra, o
relato, o sentido da informação, seu ideário é o do humanista Ortega y Gasset.
O chefe de sua representação no Brasil, Juan Árias, é um experimentado
jornalista com grande cancha internacional, formado em teologia, um dos grandes
especialistas em protocristianismo.
Cebrián apresentou-se como
criador de jornais de papel, mas não ignora o fabuloso universo conectado e
adverte que não tem certeza qual será o modelo vitorioso. Idealista e cético:
seu jornal harmonizou as diferentes plataformas tecnológicas e, mais do que
isso, sua redação globalizou-se funcionando 24/24 horas para atender as edições
internacionais. Seu serviço online, gratuito, tem uma formidável aceitação no
mundo latino-americano servido por uma imprensa geralmente conservadora,
monolítica. O El
País nas bancas da América Latina significa pluralismo.
Convertida ao
empresarialismo, a SIP esqueceu sua vocação, compromissos e raízes originais.
Os jornalistas foram contemplados apenas no “Domingão da SIP”, uma sessão
aberta para profissionais e estudantes. A fascinação com as novas tecnologias
limitou-se à obsessão por infalíveis “modelos de negócio” para grandes
empresas, desprezados os milhares de jornalistas-empresários engajados em blogs
e sites altamente qualificados, batalhadores da pequena imprensa, das rádios e
da TV via internet.
A defesa da liberdade de
expressão num continente ameaçado pelo neocaudilhismo não deveria ser a única
preocupação daquela que nasceu para valorizar o jornalismo.
Esta assembleia da SIP foi
um caso de distração coletiva. Isso acontece quando se dá as costas ao passado,
ou quando não se sabe utilizar as ferramentas de busca.
Fonte: Observatório
da Imprensa
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