O Rubicão foi atravessado à vista de todos e, na nova margem em que nos
encontramos, não há mais caminho de volta. Estamos, agora, em pleno território
da República - não mais a de fachada, velha conhecida -, compelidos a devassar
uma terra ignota, ainda envoltos na névoa deixada por décadas de surtos de
modernização, cada qual em estilo adequado às conjunturas que os viram nascer,
mas sempre sob a lógica afeita aos principados a exercitar verticalmente sua
vontade sobre uma sociedade como base passiva.
O julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal (STF) - que se
investiu da pesada toga de um Senado romano desde a leitura em plenário do
introito à denúncia do procurador-geral da República - pretendeu ser um
julgamento político da História de uma sociedade submetida à discrição do poder
político da administração, em nome dos valores e das instituições consagradas
na Carta Magna de 1988, que tardam em se fazer reconhecer.
O passado, tal qual o conhecemos, não deve mais iluminar o futuro, pois, a
esta altura do século, por maiores que tenham sido os seus méritos na
construção da identidade nacional, de uma cultura pluralista e de um enérgico
sistema produtivo, a hipoteca que nos deixou é a de uma sociedade rebaixada
diante do Estado e enredada em suas malhas. Se ele, sem dúvida, foi eficaz em
nos trazer a modernização, somente o foi ao alto preço de ter sacrificado em
favor dela o moderno e os seus valores.
O nome próprio do moderno é o da autonomia que se exprime no exercício da
livre manifestação de vontade da cidadania, a partir de uma vida associativa e
de partidos políticos que extraiam sua seiva de um mundo da vida descontaminado
do poder administrativo e do poder sistêmico da economia, para usar a
linguagem, incontornável na cena contemporânea, de Jürgen Habermas.
O Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, sem se limitar à avaliação de
comportamentos ilícitos na esfera da vida privada - os personagens dos bancos e
das empresas envolvidas -, privilegiou a perspectiva da esfera pública, os
atentados ao sistema de representação política e aos procedimentos
democráticos, identificando a necessidade de limpeza dos filtros que levam a
essa esfera a manifestação de vontade do cidadão. Vale dizer, delitos cometidos
contra a República e suas instituições.
Em alguns votos contundentes, em que personagens clássicos da Roma
republicana foram evocados, ministros da Suprema Corte demonstravam estar
conscientes de que anunciavam um novo começo para a democracia brasileira sob a
égide de uma ética republicana. E não poucos mencionaram a Lei da Ficha Limpa -
na origem, uma lei de iniciativa popular - como instrumento de proteção ao
sistema da representação política, considerada como bem maior a ser defendido.
Provavelmente, ecoaram nesse tribunal os argumentos de maior alcance pedagógico
já registrado entre nós em favor da democracia representativa.
A fixação dos votos dos ministros do STF no tema dos procedimentos, tendo em
vista guarnecer a todos com um direito igual em suas manifestações de vontade -
"núcleo dogmático" de validade universal nos sistemas jurídicos das
modernas democracias ocidentais -, execrando a tentativa de colonização da
representação popular por parte da administração e do poder do dinheiro, deixa
no vazio as insinuações de que essa Ação Penal 470 seria mais um episódio da
judicialização da política entre nós, que, por definição, gravita em torno de
matéria substantiva.
A democracia de massas, que se amplifica com as poderosas mudanças sociais
de que o País é hoje um laboratório aberto, não pode desconhecer a República e
as suas instituições, sob pena de se ver dominada pelos interesses políticos e
sistêmicos estabelecidos. No mais, não há uma Muralha da China a separar a
democracia social da democracia política, desde que essa esteja aberta a uma
competição que não crie obstáculos às legítimas pretensões dos agentes,
partidos, sindicatos e organizações sociais que nela atuem, visando a realizar
seus interesses e valores.
O seminário com público de massas em que se converteu o julgamento da Ação
Penal 470, por sua vez, expôs a nu as fragilidades do sistema político vigente,
em particular a modalidade sui generis com que aqui se pratica o
presidencialismo de coalizão, indiferente a programas políticos e cruamente
orientado para ações estratégicas com vista à conquista do voto e à reprodução
eleitoral das legendas coligadas. Nesse processo, os partidos migram da órbita
da sociedade civil para a do Estado, quando passam a ser criaturas dele.
Por causa da natureza fragmentária do quadro partidário e da dispersão dos
votos dela resultante, o governante vê-se tangido, em nome da governabilidade,
a reter insulado o cerne do programa com que foi eleito - que nunca sai ileso
dessa operação - e a facultar o acesso à máquina estatal e às suas agências a
aliados de ocasião com o objetivo de obter maioria parlamentar. O cimento
notório dessas coligações deriva do loteamento entre elas de posições no
interior da administração pública, tornando-a vulnerável às pressões
privatistas exercidas em favor de financiadores de campanhas e de apoiadores
políticos.
Nada de novo no diagnóstico, para cujos males há remédios conhecidos em
vários bons projetos em andamento no Parlamento, entre os quais o que prevê
financiamento público das campanhas eleitorais e a extinção das coalizões
partidárias nas eleições proporcionais. O laissez-faire em política não é menos
deletério do que em economia, e desde Maquiavel se sabe que as Repúblicas que
fizeram História começaram com a ação virtuosa de um legislador.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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