Fernando Haddad está cercado por José Dirceu e Paulo Maluf. Sobre Dirceu,
aparece a palavra "condenado"; sobre Maluf, "procurado".
Contaminada pelo desespero, a propaganda eleitoral de José Serra não viola a
verdade factual, mas envereda por uma perigosa narrativa política. O candidato
tucano está dizendo que eleger o petista equivale a colocar uma quadrilha no
comando da prefeitura paulistana. A substituição da divergência política pela
acusação criminal evidencia o estado falimentar da oposição no país e, mais
importante, inocula veneno no sistema circulatório de nossa democracia.
Demóstenes Torres foi expulso do DEM antes de qualquer condenação, quando
patenteou-se que ele operava como despachante de luxo da quadrilha de Carlinhos
Cachoeira. José Dirceu foi aclamado como herói e mártir pela direção do PT
depois da decisão da corte suprema de uma democracia de condená-lo por
corrupção ativa e formação de quadrilha. O mensalão é um tema legítimo de
campanha eleitoral e nada há de errado na exposição dos vínculos entre Haddad e
Dirceu. Contudo, a linguagem da política não deveria se confundir com a
linguagem da polícia.
Dirceu permanece na alta direção petista pois é um dos artífices de uma
concepção da política que rejeita a separação entre o Estado e o partido. No
mensalão, a imbricação Estado/partido assumiu o formato de um conjunto de
crimes tipificados. Entretanto, tal imbricação manifesta-se sob as formas mais
diversas desde que Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto. O código genético
do mensalão está impresso no movimento de partidarização da administração
pública, das empresas estatais, dos fundos de pensão, dos sindicatos, das
políticas sociais e da política externa conduzido ao longo de uma década de
lulismo triunfante. Na linguagem da política, Dirceu figuraria como símbolo da
visão de mundo do lulo-petismo. Mas a campanha de Serra não é capaz de escapar
ao círculo de ferro da linguagem policial.
A Interpol define Paulo Maluf como um foragido da Justiça. Lula e Haddad não
se limitaram a firmar um pacto eleitoral com o partido de Maluf, mas
peregrinaram até a mansão do fugitivo para desempenhar o papel abjeto de
cortejá-lo como liderança política. Faz sentido divulgar, no horário de
campanha, as imagens da macabra confraternização. Contudo, uma vez mais, seria
indispensável traduzir o evento na linguagem da política, que não é a da
Interpol.
Maluf é um caso extremo, mas não um ponto fora da curva. Lula e o PT
insuflaram uma segunda vida aos cadáveres políticos de Fernando Collor, Jader
Barbalho, José Sarney, Renan Calheiros e tantos outros. As alianças recendem a
oportunismo, um vício menor, mas a extensão da prática exige uma explicação de
fundo. O paradoxo aparente do encontro entre "esquerda" e
"direita" é fruto de um interesse compartilhado: a continuidade da
tradição patrimonial de apropriação da "coisa pública" pela elite
política. As "estranhas alianças" lulistas funcionam como ferramentas
para a repartição do imponente castelo de cargos públicos na administração
direta e nas empresas estatais. Até hoje, o Brasil não concluiu o processo de
criação de uma burocracia pública profissional. Na linguagem da política, a
confraternização de Lula e Haddad com Maluf ajudaria a esclarecer os motivos
desse fracasso. Mas a propaganda eleitoral de Serra preferiu operar em outro
registro.
A campanha do tucano oscila entre os registros administrativo, moral e
policial, sem nunca sincronizar o registro político. De certo modo, ela é um
reflexo fiel da falência geral da oposição, que jamais conseguiu elaborar uma
crítica sistemática ao lulo-petismo. Entretanto, nas circunstâncias produzidas
pelo julgamento do mensalão, a inclinação oposicionista a apelar para a
linguagem policial tem efeitos nefastos de largas implicações. Na democracia,
não se acusa um dos principais partidos políticos do país de ser uma quadrilha.
O PT não é igual à sua direção eventual, nem é uma emanação da vontade de
Dirceu ou mesmo de Lula. O PT não se confunde com o que dizem seus líderes ou
parlamentares em determinada conjuntura, nem mesmo com as resoluções aprovadas
nesse ou naquele encontro partidário. Embora tudo isso tenha relevância, o PT é
algo maior: uma história e uma representação. A trajetória petista de mais de
três décadas inscreve-se no percurso da sociedade brasileira de superação da
ditadura militar e de construção de um sistema político democrático. O PT é a
representação partidária de uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros.
A crítica ao partido e às suas concepções políticas não é apenas legítima, mas
indispensável. Coisa muito diferente é tentar marcá-lo a fogo como uma coleção
de marginais.
O jogo do pluralismo depende do respeito à sua regra de ouro: a presunção de
legitimidade de todos os atores envolvidos. Nas democracias, eleições se
concluem pelo clássico telefonema no qual o derrotado oferece congratulações ao
vencedor.
Em 1999, após o terceiro insucesso eleitoral de Lula, o PT violou a regra do
jogo, ao desfraldar a bandeira do "Fora FHC". Serra ficou longe disso
dois anos atrás, mas seu discurso de derrota continha a estranha insinuação de
que a vitória de Dilma Rousseff representaria uma ameaça à democracia. Agora,
na eleição paulistana, a propaganda do tucano sugere que um triunfo de Haddad
equivaleria à transferência da prefeitura da cidade para uma quadrilha. Na
hipótese de derrota, como será o seu telefonema de domingo à noite?
Marqueteiros designam ataques ao adversário eleitoral pela expressão
"propaganda negativa". O rótulo dos vendedores de sabonete abrange
tudo, desde a crítica política fundamentada até as mais sórdidas agressões
pessoais. O problema da campanha de Serra não está no uso da "propaganda
negativa", mas na violação da regra do jogo. Não é assim que se faz
oposição.
Fonte: O Globo
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