Para mudar de fato a cultura
política, o STF terá que criminalizar muitas outras práticas correntes e
condenar muitos outros agentes. Poderia começar pela liberação de emendas
parlamentares para os partidos aliados, uma prática dos governos federal e
estaduais
Com o fim do julgamento da ação penal do mensalão, proliferam louvores ao
Supremo Tribunal Federeal (STF) e apregoa-se que estamos diante de um marco de
mudança. O presidente da Corte, ministro Ayres Britto, dizia a esta coluna na
segunda-feira que, apesar do sono fatiado pelo julgamento, conforta-se com a
certeza de que ele terá um efeito salutar sobre a cultura política. Delitos
diversos ocorreram, 25 réus foram condenados e pegarão penas pesadas. Recursos
virão, mas não impedirão as prisões, quem sabe a exposição de punhos notórios
algemados. Apesar dos excessos cometidos, que ainda serão debatidos, o STF sai
fortalecido e reconhecido. Mas, "data vênia", como dizem seus
ministros, entre o resultado do julgamento e a mudança da cultura política,
continuará havendo distância oceânica. Para mudá-la de fato, o Supremo terá que
criminalizar ainda muitas outras práticas correntes e condenar muitos outros
agentes. Poderia começar considerando como peculato a liberação de emendas
parlamentares para os partidos aliados, prática do governo federal e dos
governos estaduais.
O dever de casa do STF, para continuar mudando o país, não é (apenas) julgar
outros processos e mensalões que tramitam no Judiciário. É tornar permanente
sua ação profilática contra a doença do sistema político. Não apenas contra
essas metástases que afloram sob a forma de escândalos. Quem ouviu, ao longo de
41 sessões, a narrativa conduzida pelo relator Joaquim Barbosa e acolhida pela
maioria dos ministros pode até achar que as penas estão sendo brandas. Há
internautas dizendo isso. O porém da narrativa do relator é que ela e seus
rascunhos (que tiveram como autores o relator da CPI dos Correios, Osmar
Serraglio, e o então procurador-geral, Antonio Fernando) ignoram o contexto dos
delitos: o funcionamento do sistema político-eleitoral e do presidencialismo de
coalizão. O ministro Celso de Mello advertiu que voto não é salvo-conduto para
o delito nem indulta criminosos. Forte e preciso. Mas o problema é que nosso
sistema político estimula não apenas o caixa dois ou o financiamento irregular
de campanhas, mas outros delitos, como a corrupção ativa e passiva e o
peculato. E a lavagem de dinheiro, no sentido que lhe deu agora o STF. Político
não põe a mão em dinheiro. Sempre usa terceiros. Estarão sempre "lavando",
pela nova jurisprudência.
Para mudar mesmo a cultura política, o STF terá de criminalizar a
distribuição de cargos entre partidos aliados. Qual o governo, nas três esferas
da federação, que não faz isso? E o fazem buscando aquilo que o ministro Marco
Aurélio definiu como objetivo do mensalão: fidelizar uma base aliada. Talvez
seja mais um caso de peculato: uso de bens públicos com propósitos políticos
específicos. Pode também ser peculato a liberação de emendas orçamentárias para
partidos aliados. É dinheiro público como o da Visanet, embora este vá ser um
ponto ainda muito contestado. A "auditoria" do jornalista Raimundo
Pereira (Retrato do Brasil) no contrato indica que os R$ 73 milhões foram
aplicados em ações publicitárias, e não usados para comprar deputados, como
repetiu ontem o relator. A sentença é irrecorrível, mas se o PT um dia fizer
sua narrativa verdadeira do caso, terá que abordar isso. Entretanto, o assunto
aqui são as emendas, mecanismo que todos os governantes usam escandalosamente
para "fidelizar aliados".
Sem fidelizar aliados, como ter maioria e governar? O STF teria uma resposta
ou proposta? A mais elementar seria reduzindo o número de partidos. Mas quando
foi tentada uma barreira, o STF rechaçou a mudança na lei.
Barbosa voltou a falar ontem da busca de uma "contribuição" junto
à Portugal Telecom para resolver problemas do PT e garantir o repasse prometido
ao PTB/Roberto Jefferson para o pleito de 2004. Ele talvez não saiba, mas todos
os partidos buscam (e recebem) contribuições das empresas que têm negócios com
o governo. Claro que é reprovável, mas tais contribuições nunca foram tidas
como "vantagem indevida" pelos tribunais. No pleito deste ano, devem
ter ocorrido fartamente, longe dos tribunais. Contra isso, adote-se o financiamento
exclusivamente público e uma lei rigorosa para Barbosa e seus pares aplicarem
aos que a transgredirem.
O espaço é curto para tantas outra práticas que precisam ser criminalizadas.
São de amplo conhecimento. Talvez não apenas do Supremo.
O futuro do PT
Seguindo com o processo de dosimetria penal para os réus da Ação Penal 470, o
Supremo deve começar hoje a fixar as penas do ex-ministro José Dirceu. Seja
qual for a ordem de "apenamento" fixada pelo relator Joaquim Barbosa,
o PT está mais uma vez na encruzilhada. Governa o país há 10 anos, a atual
presidente é bem avaliada e, no domingo, o partido deve colher expressivas
vitórias eleitorais. Mas o julgamento deixa uma ferida na história da sigla e
de dois quadros importantes de sua elite dirigente.: Dirceu e José Genoino já
foram condenados e estarão, como vem dizendo o próprio Dirceu,
"politicamente mortos". Outro quadro importante, o ex-ministro
Antonio Palocci, já queimou duas "vidas" em escândalos. Uma no caso
do sigilo bancário de um caseiro, outra no episódio das consultorias e da
evolução patrimonial. Não deve ter uma terceira chance.
Lula não apenas seguiu sua "intuição eleitoral" ao lançar Fernando
Haddad candidato à Prefeitura de São Paulo, identificando anseios do eleitor
por novidades. Certamente mirava também o futuro do PT, um partido que
precisará produzir uma nova elite depois do julgamento do chamado mensalão.
Fonte: Correio Braziliense
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