Afirmam os críticos da cultura ocidental que a profunda crise da tradição (e da própria civilização ocidental) tem a ver com os impasses da resolução da questão judaica no mundo, e particularmente dos judeus assimilados e extraditados de sua pátria cultural. Os pensadores e líderes religiosos cristãos, das várias igrejas, ou afeiçoados aos cristianismo aceitam de bom grado que o legado problemático do judaismo é parte integrante da cultura ocidental ("os irmãos mais velhos", como disse o ex-papa). A nação cristã (reformada) mais poderosa do mundo, os EUA, tem sido uma prova inconteste desse parentesco religioso, mantendo e financiando o Estado de Israel, apesar das críticas amenas do atual presidente americano a politica expasionista do estado judeu na Palestina. Até o papa Francisco criou uma secretaria especial para os judeus, no diálogo interreligioso, separando-os dos crentes e fiéis das demais religiões. É possível continuar defendendo a tese de que a crise de nossa civilização tem a ver com a definitiva resolução da questão judaica, hoje?
Acho que não. Talvez seja exatamente o contrário. É da resolução da questão palestina, e outros povos árabes, que depende a paz no mundo e o diálogo entre ocidente e oriente, entre as igrejas cristãs e o mundo muçulmano. Naturalmente o que "lobby" econômico-financeiro e cultural tem sido muito importante para que a questão judaica se apresente como a questão de todos nós, independentemente de religião, raça ou cultura. E, observe-se, Jesus de Nazaré não era judeu. Era galileu. E Moisés,-hebreu- egípcio. Por que então todos nós temos que render homenagem aos judeus, como irmãos mais velhos dos cristãos, e povo escolhido por Deus?
Em primeiro lugar, é preciso distinguir o judaismo como cultura do sionismo como ideologia política-estatal. Como cultura, o judaismo é tão importante para nós, como a expansão maometana na Península Ibérica, os cultos afro-brasileiros, os cultos indígenas e outros. Ninguém nega a importância cultural do judaismo para o mundo ocidental (Freud, Marx, Benjamin, Kafka, Adorno etc.) eram judeus. Mas isso não nos faz a todos tributários da história e as experiências do povo judeu, não mais do que a de qualquer um outro povo.
Em segundo lugar, não só os israelitas foram vítimas preferenciais de exílio, perseguição e assassinato ao longo da história. Muitos outros povos e etnias sofreram e continuam a sofrer perseguição. Só para lembrar o genocídio de Dafur, na Africa, nunca foi lembrado e reverenciado por ninguém, nem pelos judeus. Certamente porque são africanos e não judeus ou cristãos. Ora, a solução final, como diziam os carrascos nazistas, tem sido a marca registrada das políticas imperialistas da nossa época. A invasão americana do Iraque, sob o falso pretexto de existência de arsenais atômicos escondidos no país, causou a morte de 190.000 vítimas civis! Quantos judeus choraram por elas?
Em terceiro lugar, a atual política expansionista do Estado de Israel sobre os territórios ocupados palestinos e o massacre silencioso da população palestina mostra como é possível sacralizar ou ritualizar a memória do holocausto para esconder o holocausto cotidiano de vítimas civis, que lutam pela sua terra, seu estado, sua nação. Se algum significado tem a palavra "Shoan", hoje em dia, não deve ser uma operação suspeitosa de ritualização de uma memória de sofrimento e de dor dos sobreviventes de campos de concentração. Mas a existência de milhares de refugiados palestinos, vivendo em condições subhumanas, com sua economia destruida, vivendo sob ocupação militar, sem direito a um estado, tendo que se submeter a insuportável pressão econômica e militar do estado de Israel. Esse é o significado do holocausto contemporâneo, como disse o escritor português José Saramago.
PS. A propósito, o significado da Pascoa ("Pessach") judaica é a comemoração pelos judeus do sacrifico dos primogenitos (animais e humanos) egípcios, pelo quê foi obtida a sua libertação da escravidão egípcia. É possível comemorar tal ato de barbárie contra vítimas inocentes?
Michel Zaidan Filho, sociólogo e professor da UFPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário