Sonia Racy | O Estado de S. Paulo
Para o cientista político, Constituição tem, sim, de ser revista, mas não pelo atual Congresso, que repetiria os vícios de sempre.
Números de recente pesquisa da USP, que ele expõe em livro a ser lançado nos EUA, apontam “completa desconexão” entre os partidos e a sociedade
Há cerca de dez anos José Álvaro Moisés estuda, com regularidade e método, o modus vivendi entre governantes e governados no País. Há quatro, mergulhou na intrincada relação entre a elite e a população, trazendo à luz um cenário bem diverso do discurso habitual sobre esse tema. Como resultado, escreveu vários livros descobrindo o Brasil real que se move no dia a dia entre governo, cidadãos, partidos, ideologias, democracia, autoritarismo.
O mais recente desses estudos, com sua equipe no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, está exposto em dois livros que o cientista político lançará nos Estados Unidos, pela Global Press. Neles vem à tona, entre outros dados, que 90% dos eleitores do Brasil não se sentem representados por nenhum partido – isso em meio a uma crise “multidimensional”, ao mesmo tempo econômica, política e de valores. “Estamos vivendo talvez a mais grave crise de todo o período republicano”, afirma o professor nesta entrevista a Gabriel Manzano.
O País precisa, com urgência, “superar a total desconexão que se instalou entre os partidos e a sociedade”, adverte. Ao analisar saídas para isso, inclui o que, segundo ele, seria um bom caminho para o Brasil voltar à normalidade: “Consultar a sociedade sobre uma reforma constitucional, mas a ser feita a partir do novo governo eleito em 2018”. A seguir os principais trechos da conversa.
Quais os dados mais expressivos que a nova pesquisa do Núcleo da USP detectou?
Ele detectou que estamos vivendo, talvez, a mais grave crise de todo o período republicano. E ela é multidimensional. Uma crise econômica, uma crise política e uma profunda crise de valores –, agravada por um abismo entre a opinião pública e o sistema político. Os números que levantamos nos dizem que 90% dos cidadãos não se sentem representados por nenhum partido político. Que 95% sentem que o País vive uma “crise de projeto”. E mais: 92% acreditam que todos, ou quase todos os políticos são ladrões. E 80% dos consultados são incapazes de apontar o nome de um político capaz de tirar o Brasil dessa situação.
O que se traduz em completo distanciamento entre representantes e representados.
Sim. A confiança dos cidadãos nos partidos era de 19% em 2006 e encolheu para 14% em 2014. São 86% que não confiam. E o mais preocupante: chegam hoje a 45% os que acreditam que a democracia pode funcionar sem os partidos. Praticamente metade da cidadania dispensa todas as siglas existentes.
E neste exato momento líderes partidários propõem a criação de uma verba especial – algo em torno dos R$ 3 bilhões – para financiar campanhas partidárias…
Sabemos que a democracia tem um custo, ela não se realiza sem recursos. Mas vivemos um quadro de ampla desconexão entre partidos e a sociedade. É certo que fora dos partidos você não constrói uma democracia. Mas eles não estão dando motivos para merecer esses recursos públicos. Nunca criaram uma cultura de se relacionar com seus eleitores para deles obter doações privadas. O STF tomou uma decisão acertada, ao proibir o financiamento das empresas nas campanhas, mas não se resolveu direito a maneira de substituir essa fonte.
Qual seria essa maneira?
Acho que deveria haver um sistema misto que, por um lado, utilizasse recursos públicos e por outra, progressivamente, fosse reduzindo os limites dessa ajuda ao longo do tempo. Países como França, Bélgica, Portugal já fazem isso. Daria um tempo para as siglas oferecerem aos seus eleitores motivos para ajudá-los diretamente. Mas para isso os partidos teriam de se reconectar à sociedade. Falta saber se eles aceitam esse desafio. Se não aceitarem, acredito que, com o tempo, vão desaparecer.
Mas muita gente diz que, bem ou mal, os partidos garantem a governabilidade.
A governabilidade gerida estritamente em função dos objetivos do governo é um conceito falso. A governabilidade é, também, um atributo dos governados. Na democracia, os eleitores entregam sua soberania a quem eles elegem. Mas isso pressupõe uma mediação, um fluxo entre o eleitor e seu eleito. Tal quadro não existe. Esse diálogo está inteiramente rompido no Brasil.
Os episódios de corrupção pioraram a percepção do eleitor sobre os eleitos. Isso tem muito peso, no tamanho da crise?
Esse é um bom exemplo. Veja, os partidos foram os grandes protagonistas da montagem de uma corrupção sistêmica que envolveu dirigentes partidários, empreiteiros, marqueteiros, burocratas. No entanto, até agora nenhum desses partidos assumiu perante a sociedade o compromisso de que não vai mais agir dessa maneira. Nenhum pediu desculpas por ter causado esse caos na política e essa sangria de dinheiro público. Isso confirma e reforça a desconexão partido-sociedade de que falamos. E pior, oferece uma base social para alternativas autoritárias. Entre 2006 e 2014 saltou de 15% para 20% a parcela de brasileiros que aprova a ditadura ou diz não ter preferência por nenhum regime político em particular. Numa sociedade complexa como a nossa, um quinto da cidadania revela propensão autoritária. Previsível que, nas manifestações, apareçam grupos propondo a volta dos militares.
Uma parte de sua pesquisa, a propósito, adverte que “a presença de traços autoritários (na sociedade) não está condicionada à classe social”. Pode explicar?
Sim, num capítulo sobre elite e massas constatou-se que a adesão geral da população à democracia é de 67,1% mas a da elite é maior, de 97,1%.Em outra tabela se revela que na esquerda 72% aderem ao regime democrático e no centro essa proporção é maior, de 78,8%. Uma terceira questão apontou que os públicos de massa revelaram uma posição mais liberal sobre o papel do Estado, defendendo menor intervenção pública nas atividades privadas – divergindo do discurso habitual.
O governo Temer ainda não sabe se terá apoio suficiente para passar boas reformas e vê a oposição readquirir fôlego. Isso representa risco de algum “incidente” até 2018?
Esse risco não é enorme, mas existe. O fato é que o País tem de achar saídas até outubro de 2018 mas não temos líderes com dotes de estadista para apontar rumos. Os partidos banalizaram o processo político de tal modo que, ao invés de estimular o surgimento de novas lideranças, congelaram as atuais, já ultrapassadas para os desafios que temos. Daí, acho muito importante, por exemplo a proposta recém-publicada no Estado por três juristas (Manifesto à Nação, por Modesto Carvalhosa, José Carlos Dias e Flávio Bierrenbach, dia 9/4/2017), propondo um pacote de medidas. A coisa mais importante que apontaram é que a Constituição, já com quase 100 emendas em 30 anos, precisa ser reformada.
O atual Congresso teria condições de melhorá-la?
O Congresso não tem interesse em mexer em modernizar o sistema político. Penso que a opinião pública deveria ser consultada sobre se está de acordo com a ideia de reformar a Constituição. Se ela disser sim, em outubro de 2018 poderíamos eleger um novo governo e, ao mesmo tempo, autorizar o Congresso então eleito – ou, em vez disso, uma assembleia constituinte exclusiva – a fazer a reforma da Constituição e do sistema político. Acho esse tema cada vez mais urgente, visto que o atual Congresso não vai se autorreformar. derrubar os benefícios que criou para si.
Como seria esse processo de saída da atual crise?
Vejo três prioridades para se enfrentar. A primeira, já falamos no início, resolver o financiamento eleitoral, para desmontar o padrão de corrupção que se instalou por toda parte. O País tem de resolver se quer o fundo partidário, um fundo emergencial para campanhas ou um sistema misto. Eu defendo o misto, mas isso é uma consulta a se fazer à sociedade.
Quais as outras duas?
A segunda é a questão da representação, hoje inteiramente distorcida, e a terceira a busca de simetria entre os poderes Legislativo e Executivo. Na primeira delas, é urgente aproximar o representante do representado. Teríamos que diminuir muito o tamanho dos distritos eleitorais e dar ao eleitor o direito a dois votos. Numa eleição para a Câmara, por exemplo, o eleitor votaria em um candidato de seu distrito – concorreria um só nome por partido, o que baratearia as campanhas. O outro voto seria no partido. Ou seja, assim se define o tamanho da bancada e o eleitor é que determina a ordem de nomes na lista partidária.
E quanto à volta da simetria entre os poderes?
É preciso reequilibrar. O presidente brasileiro hoje tem poderes demais. Tem medida provisória, poder de indicar pessoas para altos cargos, e, mais que isso, hoje só o Executivo pode propor o orçamento. A meu ver, o Legislativo deveria ter mais poder de interferência na feitura do orçamento. Essas medidas todas deviam, lógico, ser combinadas com uma democratização interna da vida dos partidos.
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