- O Estado de S.Paulo
Consciente do rebuscamento do falar jurídico, desembargador traduzia tudo para o português
Nos regimes democráticos, há o julgamento público, gravado, filmado e televisionado. Uma anormalidade produz uma crise; há um acusado que, tendo o direito de defesa, promove uma disputa a qual é levada a um juiz que, num julgamento aberto e invocando a lei, fecha o processo.
O antropólogo Victor Turner estudou as crises como “dramas sociais”. Os conflitos recorrentes que investigou entre os ndembu de Zâmbia levavam à segmentação e à uma indesejável perda de continuidade coletiva. Para Turner, processos agudos de disputa interna são marcados por quatro momentos interdependentes. O primeiro seria o da crise, quando comportamentos fogem das normas; o segundo é o do distúrbio por ela causada. O terceiro aciona tentativas de reparação e compensação do malfeito. Nesta etapa, entra em cena a turma do ‘deixa disso’ com o objetivo de mitigar os pontos de vista em colisão. Numa quarta e última fase, ocorreria rearranjo, concordância ou cisão. Um modificação das rotinas tradicionais ou o rompimento do grupo em duas comunidades.
Parece familiar, não?
Na ausência daquilo que o historiador inglês E. P. Thompson chamou de “the rule of law” - o domínio da lei -, são os incomodados que se mudam. Nas ditaduras, eles são presos ou eliminados como é comum nas crises sem a mediação de um juízo público englobador. Nos conflitos tribais investigados por Turner, a norma costumeira levava à bifurcação. Nas sociedades nacionais, a lei escrita e promulgada, aceita por todos e diretamente afastada dos conflitos, é invocada e pode até mesmo ser usada contra aqueles que detêm o poder - controle do contexto. O “domínio do fato”, como foi mencionado na condenação unânime e histórica do ex-presidente Lula - uma persona social dotada de um imenso “capital simbólico” para que ninguém diga que eu não gosto e não leio, além de Marx, Pierre Bourdieu.
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O julgamento foi extraordinário.
Pela primeira vez no Brasil, vimos desembargadores condenarem em segunda instância um ex-presidente da República. Assistimos a um drama que, depois de inúmeros inquéritos e vergonhosas descobertas de gorjeta, fechava a cortina, reafirmando um adormecido poder da lei aplicada a um representante máximo do poder e dos seus sequazes - aqueles que puseram a política a serviço do enriquecimento particular, em vez de se servirem dela para o enriquecimento público.
Na contramão dos axiomas do poder à brasileira, um ex-presidente emblemático da defesa dos oprimidos foi desmascarado e condenado, dissolvendo as ideologias nativas do “quanto maior menos cadeia”, do “você sabe com quem está falando” e do pós-moderno populismo no qual todos ganham, ninguém perde e nós (os donos do poder) ganhamos mais do que todos.
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Condenou-se uma figura-tabu, tida como intocável. Uma pessoa tão especial e acima da lei que é capaz de suscitar a onipotente, absurda e surreal narrativa de que sem ela não haveria democracia no Brasil.
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Outra surpresa foi entender a língua dos desembargadores. Um deles, aliás, tendo consciência do rebuscamento do falar jurídico (construído para não ser entendido pelas pessoas comuns) tinha o cuidado de traduzi-lo para o português.
O ritual inovador reiterava muito do que tenho escrito neste espaço sobre as imposições dos papéis ou cargos públicos aos seus ocupantes. O julgamento foi histórico porque também recapitulou o papel de presidente da República nos seus privilégios e nos seus deveres e suficiências. O eleito em nome dos pobres e dos que queriam uma sociedade mais igualitária - o supremo magistrado da nação - pode alinhar-se aos ricos e com eles assaltar o País? Os papéis mais altos e nobres exigem mais lealdade dos seus atores. Quanto maior o cargo, maior a responsabilidade e punição.
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A narrativa de que o condenado foi vítima de uma conjuração corporativa - uma inquisição - é absurda, a menos que o julgamento não tivesse sido realizado publicamente, seguindo o processo do estado democrático de direito. Suas evidências não foram colhidas por órgãos secretos de segurança como ocorre nas ditaduras - esses regimes, aliás, tão a gosto dos que recusam a realidade e confundem meios e fins.
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Mas, como nada se fecha no Brasil, já se projeta uma regra fora da regra: há o condenado, mas não pode haver prisão. Confunde-se desobediência civil com a tentativa de assassinar as mediações que sublimam o confronto aberto sem aviltamento dos envolvidos. É justamente no julgamento, nesse rito final, que se faz justiça não a pessoas, partidos ou facções, mas à sociedade brasileira. Sem ele, não se abre caminho para a democracia. Sua rejeição nos leva diretamente à violência que assassina mediações.
Lula diz ter consciência do que está acontecendo no Brasil. Eu jamais tive dúvidas sobre isso e fiz uma obra demonstrando o óbvio: o nosso problema é assistir como a casa sempre vence a rua, e como relacionamentos pessoais englobam a lei.
Até, quem sabe, esse julgamento.
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