- Valor Econômico
A ideia de que o Estado tem dono não é exclusiva dos políticos
Maria Barros Guimarães, conhecida em São José do Belmonte (PE) como Dona Senhora, bem sabia do valor da educação. Diariamente, tomava o ponto das duas netas. Perguntava qual era o capítulo do livro estudado naquele momento, abria-o na página indicada e, à medida que as meninas contavam o que tinham aprendido, dava ciência mudando as folhas e passeando pelos textos com a ponta de um lápis. De vez em quando, fazia perguntas, questionava o que escutara e mandava as duas estudarem mais.
Mishella e Simara já estavam perto de se formar na Universidade Federal de Pernambuco quando descobriram o segredo de Dona Senhora: vovó era analfabeta. Como milhões de brasileiros de seu tempo, não aprendeu a ler por duas razões: a pobreza de sua família e a baixíssima oferta de escolas públicas. Se na década de 1950, quando a classe média foi às ruas empunhando cartazes onde se lia "o petróleo é nosso", apenas 25% das crianças cursavam o ensino básico, o que esperar do início do século XX?
Dona Senhora sabia, assim como milhões de pais de famílias humildes, que só há um caminho para a superação da pobreza: o acesso à educação. Para ela, o analfabetismo era uma nódoa, uma condição vergonhosa que deveria restringir-se à sua geração. No Nordeste, as famílias se orgulham do número de "doutores" que conseguem formar. "Lá em casa, formei quatro dos cinco filhos", diz o pai orgulhoso. Na casa de Maria Barros Guimarães, os cinco filhos estudaram e dois se tornaram "doutores", sendo que um deles, já funcionário do Banco do Brasil, fez vestibular somente aos 40 anos porque não havia curso superior nos rincões de Pernambuco.
Sem saber ler, Dona Senhora salvou as duas gerações seguintes de sua família, mas o Brasil continua com péssimos indicadores educacionais. A Constituição de 1988 criou condições para a universalização do ensino básico. Praticamente todas as crianças estão na escola. No ensino médio, etapa da aprendizagem crucial para a formação, persiste, porém, uma tragédia, apesar da melhora ocorrida nos últimos anos: a taxa líquida de matrícula está em 62,7%, sendo que no Nordeste pouco mais da metade dos jovens (52,5%) está na escola.
Os mecanismos de aprofundamento e perpetuação das desigualdades seguem intocados. Especialistas sustentam que o anacronismo do currículo do ensino médio - exageradamente técnico e inacessível à maioria dos estudantes pobres - é a principal razão da evasão. O atual governo propôs a reforma do ensino médio e o Congresso a aprovou. A reação dos sindicatos de professores e funcionários e das entidades classistas que os representam foi ruidosa, deixando claro quem são os responsáveis pelo malogro do ensino médio. Para eles, a solução seria uma só: mais dinheiro.
"Os modelos de ensino médio vêm sendo criticados desde a primeira metade do século passado por reforçar desigualdades históricas, preparando as camadas ricas para a universidade, enquanto um ensino técnico deficiente fica reservado aos filhos da população pobre. Os resultados desse processo podem ser verificados pelos números: 86,6% é a taxa de atendimento do ensino médio para o quartil mais rico da população brasileira. Enquanto isso, apenas 52,5% dos 25% mais pobres estão nesta etapa escolar", revela a edição de 2017 do Anuário Brasileiro da Educação Básica, elaborado pela ONG "Todos Pela Educação".
Esta é uma faceta antiga da vida nacional: os funcionários públicos se sentem donos das escolas, do sistema de saúde, das estatais. Eles têm a seu favor uma deformação de origem que dificulta sobremaneira qualquer tentativa de mudança: a estabilidade no emprego, anacronismo consolidado na Constituição para supostamente blindar servidores de pressões políticas - blindou? Claro que não! Basta recordar o que o governo anterior operou, ao arrepio da lei, no Tesouro Nacional, Caixa , Petrobras...
A estabilidade, além de ser um terrível incentivo à ineficiência, fortalece o patrimonialismo. Na maioria das vezes, mudar estruturas que ainda estão no século XIX é difícil justamente por essa razão. Nos debates, alguns alegam que o problema não está no fato de ser público, afinal, em nações como Noruega e Alemanha as estatais são eficientes. Não se tenha dúvida: seriam muito mais se as empresas fossem privadas. No Brasil, não há chance de salvação porque, por cima da camada de ineficiência intrínseca a tudo o que é mantido pela Viúva, há ainda o patrimonialismo.
A crise política tem estimulado muitos a brandir contra o "patrimonialismo da classe política". Ora, a classe política não é integrada por extra-terrestres. Os políticos somos nós, que não nos emocionamos com os verdadeiros problemas do país - o analfabetismo renitente e vergonhoso; a péssima qualidade do ensino e da saúde pública; o baixíssimo investimento em saneamento básico; o déficit astronômico da previdência social e do funcionalismo; a obscena concentração de renda derivada de políticas que beneficiam grandes empresas, multinacionais (automobilística à frente), estudantes de famílias ricas ou de classe média alta, que não pagam um centavo para frequentar as melhores universidades do país, enquanto os filhos das famílias de baixa renda estudam em fábricas de diploma, empresas privadas com ação na bolsa e sócios estrangeiros que, nos anos dourados de Dilma Rousseff, dragaram, por meio de um negócio chamado Fies, mais de R$ 60 bilhões dos cofres públicos - uma história de desmando que ainda não recebeu a devida atenção das autoridades policiais.
O patrimonialismo está em todos os lugares. Quando foi indagado sobre o recebimento mensal de um gordo auxílio-moradia - desnecessário, uma vez que possui imóvel em Curitiba -, o juiz Sérgio Moro disse que é "complemento salarial". Foi uma resposta "macunaímica", afinal, trata-se de um juiz federal admitindo que, na companhia de juízes e procuradores, recebe dinheiro extra do Estado brasileiro disfarçado de auxílio-moradia. E sobre isso não paga Imposto de Renda (IR) - quando tem direito a participação nos lucros e resultados da empresa onde trabalha, o trabalhador paga uma bolada de IR.
O governo federal gasta hoje 57% das receitas da União com previdência. O gasto é crescente e vai constranger ainda mais o orçamento nos próximos anos porque, no fim da próxima década, haverá mais aposentados do que trabalhadores na ativa. Quem vai encolher para que os aposentados recebam seus benefícios serão os orçamentos da saúde e da educação. E quem impede que a reforma seja aprovada são eles, os funcionários públicos, os donos do poder.
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