- O Estado de S.Paulo
Urge enfrentar o desequilíbrio fiscal, a criminalidade e o desemprego estrutural
Em 1989, com o artigo O fim da História, Francis Fukuyama ganhou notoriedade e entrou para a imensa galeria dos futurólogos equivocados. Extinto o socialismo real na Rússia e na Europa do leste, o autor acreditava que as democracias liberais se tornariam a forma inexorável de governo no mundo. Tudo seria uma questão de tempo. Passados 30 anos, sabemos que a profecia falhou.
Fukuyama, entretanto, não era um sonhador solitário. Na verdade, os chamados neoconservadores nos Estados Unidos foram influentes nos três governos Bush. Os Estados Unidos teriam a “missão histórica” de levar a democracia a todos os cantos do mundo.
Porém essa missão “civilizatória”, agora se sabe, também provocou fragmentação e abriu espaço para novos radicalismos. Sem que se tenha tornado uma idílica aldeia global, parte do mundo é varrido pela força centrífuga do nacionalismo ressurgente, que fragiliza alianças - como a União Europeia -, desaloja governos e partidos tradicionais e ameaça tornar o populismo uma força hegemônica.
Independentemente do ativo papel norte-americano, outras forças tectônicas da geopolítica atuaram para moldar um mundo que não se ajusta às previsões de Fukuyama, uma delas o espetacular crescimento chinês, resultante da ação de um Estado gerencial, burocrático e distante do modelo ocidental.
De fato, o crescimento chinês - a partir das reformas pragmáticas de Deng Xiaoping - é um elemento fundamental da nova ordem que se está plasmando. Nesses 40 anos a China cresceu a 10% ao ano e 800 milhões de pessoas escaparam da linha de pobreza. O que começou como um processo de desenvolvimento baseado em exportações têxteis de baixo valor alçou a China à segunda posição na economia mundial. Um dado impressionante sobre o investimento: a China tem hoje 25 mil km de ferrovias de alta velocidade.
O vertiginoso crescimento chinês vem reduzindo o preço dos bens industrializados, o que beneficia o consumidor ocidental, mas leva esse mesmo consumidor a enfrentar um mercado de trabalho que se encolhe e se deteriora. O governo Trump e sua guerra comercial são em boa parte consequência desse deslocamento.
O avanço da tecnologia da informação é outra força tectônica que vai reconfigurando o mundo. A intensificação da automação compromete ainda mais o emprego - agora também o de alta qualificação. A população da Europa Ocidental parece acordar para um pesadelo: seus países não são mais o misto de opulência e igualitarismo de algumas décadas atrás. O desemprego elevado pressiona as finanças públicas.
Os sonhos de consumo e de uma seguridade social sólida e eterna são substituídos por políticas de austeridade que, por sua vez, parecem incapazes de garantir nova fase de crescimento equitativo.
A mesma tecnologia de informação que reconfigura e reduz o mercado de trabalho amplia o poder das redes sociais como fator político. Diminui a influência da imprensa tradicional e o espaço para o diálogo ponderado. Cresce a algaravia dos discursos inflamados, extremos e, em geral, baseados em dados e informações falsos ou distorcidos, as chamadas fake news.
Finalmente, o fluxo migratório - impulsionado também pela fragmentação de vários Estados nacionais - começa a se tornar tema decisivo nas eleições dos países desenvolvidos. O que antes provocou o surgimento de movimentos xenófobos minoritários alçou esses mesmos movimentos à condição de protagonistas. O avanço do populismo nacionalista na Itália levou à formação de um novo governo que não só cresce em popularidade com suas primeiras medidas anti-imigração como parece estar enfraquecendo a coalização de governo alemã. Angela Merkel, conservadora e compassiva, é pressionada a endurecer o tratamento da questão migratória por seus parceiros de Gabinete, sob pena de derrocada de seu governo.
No Brasil, por certo, todos esses movimentos e rupturas repercutem e nos influenciam. Temos desemprego estrutural e a mesma irresignação com a política tradicional nos atinge. As redes sociais amplificam o justo descontentamento. Como nos países centrais, a política tradicional não tem sido capaz de dar respostas e confiança à população. É um ambiente carregado, em que sinais de anomia pipocam aqui e ali.
Vivemos um tempo de urgências. Em várias frentes. Temos de constituir rapidamente uma maioria política capaz de enfrentar as três graves ameaças que nos rondam: o desequilíbrio fiscal - basicamente previdenciário -, a criminalidade e o desemprego estrutural.
Esses problemas se entrelaçam e se reforçam. O desequilíbrio fiscal exige uma crescente canga tributária - não é erro de ortografia - sobre as empresas que não gozam de privilégios e poder de mercado; a canga tributária não reverte em serviços eficientes para a população, inibe o investimento e impede nossos jovens de entrar no mercado de trabalho; o desemprego estrutural força ainda mais os déficits públicos, que, por sua vez, pressionam os juros e, por esse canal, comprometem o investimento. A ineficiência do Estado facilita a expansão do crime organizado - e do desorganizado. A população assusta-se, torna-se mais cética sobre as instituições democráticas e abre campo para o radicalismo. O potencial desestabilizador do radicalismo piora as expectativas e, por decorrência, também a situação fiscal.
Na esfera política, o sistema proporcional é um zumbi que arrasta consigo o presidencialismo de coalizão. Temos de adotar o voto distrital misto para dar novo fôlego à representatividade democrática e insuflar vida na política, mesmo que seja a partir das eleições de 2022.
Mas não podemos deter-nos nessa mudança. É hora de as lideranças enfrentarem a nossa questão fiscal, sob pena de o aquecimento global se transformar aqui em caldeirão fervente.
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José Serra é senador (PSDB-SP)
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