Uma das principais mentes por trás do Plano Real, que pôs fim à era da hiperinflação, economista diz que problemas hoje são mais fáceis de ser resolvidos
Por Machado da Costa / Revista Veja
Há 25 anos, um dos planos econômicos mais mirabolantes da história moderna — não só do Brasil, mas do mundo — atingia o seu ponto culminante, com o lançamento de uma nova moeda, que tomava emprestado o próprio nome. Cercado de desconfiança por parte da classe política, o Plano Real aliava intervenções na economia a reformas liberais para finalmente acabar com mais de uma década de hiperinflação no Brasil. Seus idealizadores viraram referências. Onze anos antes disso, Persio Arida fora, ao lado de André Lara Resende, o formulador de um projeto embrionário que seria lapidado somente em 1993, no governo de Itamar Franco, que tinha Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda. O economista, de 67 anos, recebeu VEJA, na terça-¬feira 25, em seu apartamento, na capital paulista, e relembrou o momento político vivido pelo país no período de lançamento do Real. Ao comparar aquela situação com a atual, disse que os problemas de hoje são mais fáceis de ser resolvidos. A reforma da Previdência, porém, frisou Arida, não será suficiente para solucioná-los.
• Os desafios da economia antes do Plano Real eram mais complexos que os de agora?
No lançamento do Real houve duas batalhas. A primeira era convencer a opinião pública a nos apoiar, depois de uma série de planos para acabar com a hiperinflação que fracassaram. A segunda era dar sustentabilidade à baixa inflação. Inflação baixa se consegue por várias formas, mas sustentá-la em níveis aceitáveis é muito difícil. Essas duas vitórias precisam ser celebradas, pois o cenário externo naquele momento era bastante adverso, com crise no México, na Rússia, crise cambial… e ainda teve o apagão. Durante os nove anos de Fernando Henrique Cardoso — oito na Presidência mais um antes, como ministro da Fazenda —, a situação macroeconômica foi muito difícil. Hoje, o cenário é bem mais tranquilo. E, do ponto de vista do Congresso, havia uma oposição muito mais organizada e aguerrida naquela época.
• O senhor se refere ao PT e ao ex-presidente Lula?
Certamente o Lula teria ganho a eleição se não fosse o Plano Real. Ele era o líder inconteste. O PT tinha um peso nos debates, no Parlamento e na opinião pública. Enfrentávamos uma oposição de esquerda aguerrida. A única coisa que tínhamos mais favorável do que o governo atual era uma fragmentação partidária menor. Mas existia muito mais resistência às reformas que sustentaram o Plano Real. Curiosamente, a maior oposição foi do PSDB de São Paulo, pois queríamos privatizar os bancos estaduais. Ocorria, muitas vezes, uma incompreensão do que eram as reformas modernizantes dentro do próprio grupo que sustentava o governo.
• Havia, porém, uma insatisfação dos brasileiros com a inflação. Isso ajudou?
De fato, havia uma demanda da população por um plano de estabilização. A demanda foi tão extraordinária que no Plano Larida, feito por mim e pelo André Lara Resende e que fundamentou o Plano Real, prevíamos que levaria de dois a três anos a reestruturação de todos os contratos com a moeda virtual, a chamada URV (Unidade Real de Valor). Quando posto em prática, isso virou três meses, o que mostra a velocidade de adesão da sociedade. Houve também uma circunstância excepcional: FHC era político, o que facilitou muito a conversa no Congresso. Nem mesmo o presidente entendia muito bem em que consistia o plano, mas confiava em seu ministro. FHC conseguiu, de alguma forma, travar um pacto social implícito de apoio ao programa.
• O senhor vê aprendizado no Brasil após o Plano Real?
Por conta do Real, para sustentá-lo, o país empreendeu as reformas que servem de base para o Brasil moderno. As privatizações da Telebras, dos bancos estaduais, da Vale do Rio Doce… Era tudo tão difícil que precisava de força policial na porta da bolsa de valores para segurar os leilões. Houve a construção das agências reguladoras independentes, da abertura da economia, da entrada de capital estrangeiro no mercado financeiro, do tripé macroeconômico. Depois, ocorreu uma involução de parte desses avanços no segundo mandato de Lula e nos dois de Dilma. O equilíbrio das contas públicas é um bom exemplo. O superávit primário chegou a 3% do PIB e, hoje, está em déficit de 2%.
• O senhor se coloca no panteão dos grandes economistas brasileiros?
Acho que as pessoas não devem falar delas mesmas. Mas, do ponto de vista de concepção intelectual e de impacto social, sem dúvida, o Plano Real me coloca, assim como ao André (Lara Resende), nesse lugar. De qualquer forma, volto ao meu ponto. Política econômica depende de alguém ter a ideia correta e também da equipe para executá-la. É sempre um time.
• No time do Real, houve atritos com os responsáveis pela execução, e o senhor acabou deixando o governo. Como foi isso?
Tive uma discordância grande com o Gustavo Franco por causa do câmbio, o que me fez sair do Banco Central. Eu queria liberar o câmbio logo na partida e ele queria mantê-lo em minibandas. Com certeza, a minha ideia era mais arriscada que a dele, mas teria evitado a grande crise cambial de 1999. Perdi a discussão e saí do Banco Central. O próprio André (Lara Resende) ficou muito pouco tempo na execução. Mas houve longevidade também. O Pedro Malan ficou oito anos na Fazenda. Vejo que o Plano Real tinha uma equipe com divergências internas, mas existia um processo que permitia a passagem do bastão. O próprio Gustavo o passou para o Chico Lopes, que o passou para o Armínio Fraga. Havia laços de confiança entre as pessoas. Vejo a execução como uma equipe. Trata-se de uma corrida em equipe, na qual é preciso passar o bastão.
• Por que, no ano passado, o senhor criticou a aproximação entre Paulo Guedes e Jair Bolsonaro?
Achei estranha a aproximação dos dois. Durante todo o Plano Real fui criticado por ser neoliberal, por defender ajuste fiscal, privatizações, abertura da economia etc. Eu era tachado de direita e de neoliberal. Bem… Continuo com as mesmas opiniões. Mas não me identifico com essa direita tosca que está emergindo junto do Bolsonaro. Essa direita obscurantista, anticiência, antidireitos humanos, antiagenda ambiental é uma direita tosca, uma caricatura do liberalismo. Essa direita que emergiu é uma deformação das ideias liberais. O liberalismo é fundamentado na autodeterminação do indivíduo, no direito à liberdade, no respeito aos direitos humanos. Se sou ou não sou neoliberal, não me importo. Na verdade, acho que sou até pior, o liberal clássico. Não me identifico com essa nova direita, retrógrada, intolerante. Esse foi o motivo da estranheza com essa relação entre os dois.
• Apesar de o senhor ser liberal, no Plano Real não aparece a ortodoxia tradicional do liberalismo.
Ortodoxia, à época, era fazer um ajuste fiscal brutal e colocar a taxa básica de juros na lua. Não há nada de errado nisso. O problema é que, quando a inflação é inercial em níveis muito elevados, o tranco do corte de custos precisa ser de tal ordem que nenhum político, num sistema democrático, consegue vencer a eleição seguinte. A ortodoxia é inaplicável em um sistema de voto direto. De qualquer modo, ninguém nunca entendeu essas reformas como sendo liberais. Se conduzíssemos a reforma de maneira ideológica, iríamos trilhar um mau caminho.
• O ministro Paulo Guedes vai ter dificuldade em impor suas ideias ortodoxas, então?
Ele possui uma virtude, que ficou clara no começo do governo. Durante a campanha eleitoral, Guedes defendeu a tese de que deveríamos fazer uma privatização em massa do sistema previdenciário e adotar o regime de capitalização. Ele viu que a privatização maciça não iria acontecer. Mesmo porque o próprio Bolsonaro está muito mais para estatizante do que para privatizante. Guedes encampou uma reforma mais convencional: uma combinação de idade mínima, aumento do tempo de contribuição e revisão de benefícios. Teve o mérito de abandonar suas ideias, o que não é pouco. Percebeu que estava num caminho errado e tomou outro rumo. Contudo, só o tempo dirá se uma opção que o ministro fez era o certo a fazer. Ele concentrou os esforços na Previdência e deixou de lado a agenda da produtividade. Agora, o Congresso está tomando as rédeas da produtividade para si, com a reforma tributária que avança no Legislativo.
• Ter aprovado a reforma da Previdência do governo FHC, em 1998, teria evitado o problema atual?
Talvez o problema não estivesse resolvido, mas seria muito menor. Perdemos aquela votação por 1 voto. Desde então, os gastos com a Previdência cresceram num ritmo próprio, e isso precisa ser contido. Já se sabia na época. Isso mostra um fenômeno interessante. O fato de o problema ter ficado muito mais grave do que era lá atrás gerou um entendimento melhor sobre ele. O Congresso encampou a agenda, o que é inédito. O normal é o Poder Executivo ditar a pauta, e trabalhar para convencer o Legislativo. Vivemos o caso de um Executivo que não articula nada, porém com um Congresso que toma a liderança. Isso me deixa otimista.
• O temperamento de Paulo Guedes, de entrar em conflito com parlamentares, pode atrapalhar?
Combater o Congresso é sempre um mau caminho. O Parlamento é muito mais suscetível à conversa e à persuasão do que parece à primeira vista. A minha experiência com o Real mostrou que, quanto mais explicações são fornecidas, candidamente, aos congressistas, mais eles dão apoio. O grau de desinformação no Parlamento também é muito grande. Por sorte, as atuais lideranças da Câmara e do Senado estão dispostas a tocar a agenda reformista.
• É possível voltar a crescer em ritmo mais acelerado?
O crescimento deste ano está sendo influenciado por dois fatores. O primeiro é a Argentina, cuja crise tem efeito negativo sobre o Brasil. O segundo é a excessiva ênfase dada à reforma da Previdência. Parece que é tudo ou nada. Isso tem um efeito ruim sobre o nível de atividade. Todos os investimentos estão em compasso de espera. O desafio verdadeiro está na abertura da economia, na reforma tributária, na simplificação de normas. Essa é uma outra agenda, totalmente diferente da agenda da Previdência. Essa, sim, vai fazer diferença. E, claro, educação. Educação é crítica.
• São problemas antigos do Brasil.
Parece que, ao falar isso, estou chovendo no molhado, mas não é o caso. Países que crescem rápido têm economia aberta, com sistema simples de impostos, desburocratizada, e investem muito em educação. O problema não está no total de dinheiro gasto. Investe-se muito no ensino superior e pouco no básico, o que gera resultados pífios. A abertura econômica também é crítica. E não falo só de abertura comercial ou do mercado financeiro. Tem de haver um caminho rápido para a imigração qualificada. Precisamos de imigração maciça de capital humano. Temos excessivas barreiras burocráticas para a concessão de visto de trabalho. O Plano Real foi uma agenda praticamente mágica de transformação. Esta de agora é uma agenda do dia a dia. O Brasil não cresce porque a oferta está travada. Discute-se se o Banco Central deveria baixar a taxa básica de juros para estimular a demanda — até deveria mesmo —, mas os fatores que farão diferença são a abertura econômica, a simplificação tributária, a revisão do sistema de garantias do sistema financeiro, o aumento da competição e o investimento em educação.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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