No julgamento dos ‘dossiês’ sobre antifascistas, tribunal deve impor novo freio a autoritarismo
No governo Bolsonaro, o Supremo se converteu em trincheira na defesa da democracia. É o que mostrou ontem, mais uma vez, no julgamento da ação contra a produção de “relatórios” ou “dossiês” sobre servidores públicos atuantes em movimentos antifascistas. Em seu voto, a relatora, ministra Cármen Lúcia, deu mais uma prova da relevância adquirida pela Corte para frear os ataques contumazes daqueles que tentam construir, dentro do Executivo federal, um sistema de vigilância e controle de quem o presidente vê como adversários políticos. O julgamento é também uma oportunidade para o STF reafirmar a proteção dos direitos individuais e, novamente, fixar limites à ação do Estado.
Cármen Lúcia seguiu a linha adotada na semana passada, em ação instaurada contra o uso ilegal pelo governo do sistema conectado à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), com capacidade para espionar cidadãos sem nenhum controle. Na ocasião, também como relatora, alertou que “arapongagem é crime” e rejeitou qualquer desvio antidemocrático no uso da Abin ou de qualquer outro órgão do tipo. Seu voto foi apoiado por nove ministros.
Agora, repetiu seus argumentos no processo em que estão em jogo informações recolhidas pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça, sobre 579 servidores e professores universitários. O ministro André Mendonça chegou a resistir a enviar ao Supremo o material produzido pela Seopi, sob provável inspiração da tese bolsonarista de que o Supremo invade espaços do Executivo. Cotado como um dos nomes que Bolsonaro pode indicar à Corte nos próximos meses, acabou recuando.
Em seu voto, Cármen foi incisiva sobre a atitude de Mendonça: “Todos nós, governantes e servidores públicos, nos submetemos às leis e à Justiça. Sem acesso à Justiça, não há Estado de direito, o cidadão volta a ser vassalo”. Nenhum ato, disse ela, escapa ao crivo do Judiciário, sob pena de a democracia ficar comprometida “em sua instância mais central, a garantia de direitos fundamentais”. Direitos fundamentais, concluiu, não são concessões estatais.
Embora o resultado do julgamento, aberto pelo partido Rede Sustentabilidade, ainda esteja indefinido, espera-se que desencoraje o presidente e seu círculo mais próximo de tentar instalar no governo brasileiro, em plena democracia, sistemas de espionagem interna inspirados na ditadura militar.
A ação anterior relatada por Cármen considerava o decreto de Bolsonaro que ampliava os quadros da Abin e criava o Centro de Inteligência Nacional, com funções executivas, de planejamento e assessoramento, entre elas o vago “enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. Dentro deste conceito caberia tudo, a depender da vontade do chefe. Na reclamação, os partidos Rede Sustentabilidade e Socialista Brasileiro (PSB) relacionavam os 42 órgãos no Sistema Brasileiro de Inteligência em diversas áreas — Forças Armadas, Saúde, Transportes, Fazenda e Telecomunicações, entre outras. Solicitavam que não fosse permitida a transferência à Abin de informações fiscais, telefônicas, bancárias e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Em sua decisão, o Supremo regulou esse fluxo de informações potencialmente perigosas para a privacidade, incluiu o critério do interesse público na liberação de dados, formalizou interações entre os diversos braços do sistema da Abin e subordinou ao Judiciário o acesso a alguns arquivos. É assim — sob a supervisão da Justiça — que os sistemas de informação devem funcionar numa democracia. Não como Bolsonaro exigia na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, quando confessou seu desejo de ter um sistema de inteligência com o qual pudesse “interagir”, dar um telefonema para obter informações ou encomendar alguma tarefa.
Os dois julgamentos — tanto o dos “dossiês” produzidos no Ministério da Justiça sobre antifascistas quanto o anterior, que desfez o temor de uma Abin robustecida — tratam de assunto de extrema gravidade, que exige atenção redobrada das instituições democráticas. As decisões do STF a respeito, embora fundamentais, não esgotam a questão. O apetite do bolsonarismo pelo controle do aparato do Estado se estende à operação desmonte que o procurador-geral da República, Augusto Aras, executa contra a força-tarefa da Operação Lava-Jato.
Também nesse caso, o Supremo foi firme ao desarmar a manobra em andamento no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para afastar da Lava-Jato o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa em Curitiba. Os ministros Celso de Mello e Luiz Fux, individualmente, barraram dois dos processos contra Dallagnol por motivos técnicos, como a não concessão do amplo direito de defesa. Em seu voto, o decano Celso de Mello registrou: “Não se pode simplesmente buscar silenciar, institucionalmente, o procurador que coordena em Curitiba a maior operação de combate à corrupção da história do país”. Desde ontem em licença médica, Celso desfalcará a Segunda Turma do STF, onde são julgados os processos da Lava-Jato, deixando dúvidas sobre o futuro da operação.
Evidente que o Supremo, como toda instituição da República, é maior que qualquer um de seus integrantes — e tem transmitido recados oportunos nestes tempos em que a democracia é pressionada. Por ser a instituição com maior independência ao reagir a abusos autoritários, ocupa o primeiro lugar na lista de alvos dos extremistas. O declínio autocrático de países como Venezuela, Polônia ou Hungria se consolidou com o aparelhamento da Suprema Corte. É, portanto, crucial manter a independência do STF. As decisões recentes têm mostrado que é na trincheira do Supremo que a democracia brasileira continua a resistir.
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