- Folha de S. Paulo
A reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis
A Covid-19 teria efeito ainda mais devastador se a população brasileira não contasse com o SUS. A crise econômica, trazida pela virose, teria arrastado à miséria um número muito maior de famílias caso o auxílio emergencial não chegasse com rapidez a 65 milhões de pessoas. Nada disso é trivial —antes, são exemplos notáveis de capacidades estatais desenvolvidas nos últimos 30 anos.
Elas não podem ser esquecidas quando a reforma administrativa volta à agenda política. Poucos duvidam de que a reforma seja necessária: há ineficiências a superar e privilégios a combater. Ninguém imagina que a mudança seja fácil, dados os interesses contrariados que mobiliza e os limites fiscais que a enquadram.
Mas a reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis, de forma a permitir investimentos igualmente importantes. Refletirá, inevitavelmente, uma ideia de poder público.
Segundo o "Atlas do Estado Brasileiro 2019", publicado pelo Ipea, entre 1986 e 2017 cresceu expressivamente o número de servidores nos três níveis de governo. A expansão foi puxada pelo aumento das administrações subnacionais —dos estados e, sobretudo, dos municípios—, acompanhando o aumento de suas responsabilidades na provisão de serviços sociais. Quatro em cada dez servidores municipais são educadores ou profissionais da saúde. Nos estados, educação, saúde e segurança respondem por 60% do emprego público. O setor federal cresceu menos, e a sua participação no conjunto caiu.
O gasto com servidores ativos da União manteve-se relativamente constante como fatia do PIB, mas cresceu para cerca de ¼ da receita corrente líquida. O que aumentou de forma desmedida foram os gastos com aposentadorias e pensões. A longo prazo, a reforma da Previdência trará desafogo. Mas, no presente, a despesa total com servidores pressiona os orçamentos dos governos.
Um projeto de reforma administrativa que valha seu nome tem de decidir como assegurar que não faltem professores para turnos escolares compatíveis com o aprendizado; que haja profissionais da saúde para sustentar um SUS decente país afora; que existam fiscais ambientais; que a renda básica conte com pessoal competente no cadastramento e monitoramento; que haja carreiras para servidores capazes de coordenar programas intergovernamentais e avaliar seus resultados.
Pois o problema é real, e as escolhas, difíceis. Não ajudará muito se o debate virar guerra de chavões sobre a "destruição do Estado" ou os perigos do "corporativismo".
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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