terça-feira, 27 de outubro de 2020

Assis Moreira - Bolsonaro e o interesse nacional

- Valor Econômico

Se Biden se eleger, agenda ambiental dos Estados Unidos entrará em conflito com a brasileira

A eleição presidencial nos EUA concentra a atenção global, e os governos tratam de se preparar para cenários com Joe Biden ou Donald Trump pelos próximos quatro anos na Casa Branca.

Em todo caso, de um lado chama a atenção a visível inquietação e mesmo angústia de Boris Johnson, o conservador primeiro-ministro do Reino Unido, que teve até agora relações quase carnais com Trump. O jornal “Sunday Times” aponta “pânico no 10 Downing Street, que se apressa a cortar as pontes com Trump e de cortejar Biden”. Já o jornal “Financial Times” mostra que isso não vem dando resultado. Funcionários britânicos não conseguiram até agora nem sequer encontrar um único membro do grupo de política externa de Biden, dificultando a preparação de Londres a um novo governo em Washington.

Sobretudo, chama atenção, pela temeridade diplomática, o presidente Jair Bolsonaro, que prefere viver perigosamente e jogar o Brasil em zona de risco. Há uma semana ele repetiu, de maneira inacreditável em matéria de diplomacia, declaração de amor por Trump, cujas chances de vitória ficam entre 10% e 15% no momento, segundo pesquisas de opinião. Ao receber o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Robert O’Brien, Bolsonaro reiterou sua torcida “de coração” por Trump. Em fevereiro, o presidente do Brasil já tinha usado o boné de “Trump 2020”, como fez seu filho 03, em 2018, numa visita aos EUA.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro reagiu como ofendido quando Biden, no primeiro debate com Trump, avisou que se eleito tentaria reunir outros países para fornecer US$ 20 bilhões ao Brasil para conservar a Floresta Amazônica ou então buscará sanções econômicas. Bolsonaro cortou de imediato qualquer futura tentativa de diálogo. Para ele, “a cobiça de alguns países sobre a Amazônia é uma realidade. Contudo, a externação por alguém que disputa o comando de seu país sinaliza claramente abrir mão de uma convivência cordial e profícua”.

Episódios de envolvimento direto de um presidente do Brasil numa campanha presidencial americana parecem aposta de Bolsonaro numa virada na eleição e a esperança de ser premiado por ter ficado fiel quando a situação estava ruim. O presidente do Brasil tem pouca companhia ao continuar a cortejar Trump sem nenhuma prudência. Um dos raros dirigentes europeus em exercício a apoiar abertamente um segundo mandato para Trump tem sido Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria e conhecido por frequentes atentados ao Estado de direito.

Normalmente, quando um líder político se conduz de forma diplomaticamente mais temerária, como Bolsonaro vem fazendo, era de se esperar que seu ministro das Relações Exteriores tentasse contê-lo. Ocorre que o ministro Ernesto Araújo é outro partidário ostensivo de Trump. Chegou ao bolsonarismo graças a um artigo de 2017 sobre o dito papel redentor que Trump teria para salvar o ocidente.

O embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, que tem negado dificuldade com uma eventual futura administração democrata, é outro ligado à linha conservadora de Olavo Carvalho, o astrólogo da Virgínia. E é difícil achar um analista que o considere o melhor interlocutor para uma eventual nova administração na Casa Branca.

A impressão geral de pessoas que conhecem bem Biden e os democratas ao seu redor é de que uma administração democrata não colocaria o Brasil como um alvo preferencial, não deflagraria retaliação contra o Brasil pela maneira escancarada como seu presidente torceu pelo concorrente. Primeiro, o Brasil não estará entre as prioridades de Biden. Segundo, com mais de 40 anos de diplomacia parlamentar, Biden tem ideias claras sobre como tratar amigos e não amigos.

Biden conhece bem o Brasil. Em 2013, quando foi revelado que a Agência de Segurança Nacional dos EUA espionava até o telefone do avião presidencial brasileiro, o presidente Barack Obama deu a Biden a missão de buscar descongelar as relações com o governo de Dilma Rousseff.

Joe Biden, se for o próximo presidente dos EUA, não vai sair de seu conforto para travar a relação bilateral com o Brasil. É provável que ele guarde suas forças para relações complicadas com o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin. E ninguém tampouco imagina em Washington que se repita mais tarde a afinidade pessoal ocorrida entre o então presidente Lula e o republicano George W. Bush, de lados opostos do tabuleiro político. Lula era um pragmático e o “establishment” americano sabia disso. Já Bolsonaro é considerado politicamente tóxico. De forma que Biden, se eleito, dificilmente terá interesse em recebê-lo para uma foto nos jardins da Casa Branca ou para visitar tão cedo o Brasil.

A partir do ano que vem, no caso de vitória de Joe Biden, haverá evidente choque imediato em matéria de política ambiental, por exemplo. Os EUA voltarão rapidamente ao Acordo de Paris, de combate a mudanças climáticas. Haverá forte convergência entre a posição de uma eventual nova administração americana e a da Europa na pressão sobre o Brasil e outros grandes emergentes.

Além disso, sempre na hipótese de Biden ganhar, os EUA voltarão a fazer o multilateralismo à la carte, onde lhe interessa, e certamente não vão ficar falando mal do “globalismo”. A associação brasileiro-americana sobre educação sexual reprodutiva na Organização Mundial da Saúde (OMS), um código para rejeitar políticas de aborto, seria desmontada. O discurso anti-China na OMS também tende a arrefecer. Ou seja, o Brasil vai ficar ainda mais isolado, falando sozinho junto com a extrema direita europeia e com os duros do mundo islâmico como a Arábia Saudita.

Se o Brasil já é baixa prioridade para os americanos, o mesmo acontece na Europa. O Brasil já está sentindo os efeitos do virtual congelamento da relação no mais alto nível com a Europa, em razão do desgaste forte de Bolsonaro junto à opinião pública europeia, por exemplo.

Já se Trump for reeleito, o governo Bolsonaro pode esperar na melhor hipótese que o Brasil seja tratado normalmente. Até agora, é difícil dizer o que o país ganhou de significativo ao seguir a linha trumpista.

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