terça-feira, 27 de outubro de 2020

Míriam Leitão - Bolsonaro é um extremista só

- O Globo

O resultado do plebiscito no Chile e a eleição presidencial na Bolívia são boas notícias numa região que acumula tensões e amarguras. Até a aposentadoria do senador uruguaio, e ex-presidente, José Mujica foi uma aragem de boa política pelo seu discurso forte e sincero que viralizou nas redes. Nos casos chileno e boliviano, a saída dos impasses foi pelo melhor dos caminhos, a democracia.

Bolsonaro, pela sua defesa dos regimes ditatoriais da América Latina das décadas de 60 e 70 do século passado, deu a impressão de que a região voltaria ao velho padrão de democracia interrompida. Como venceram candidatos de direita no Chile, Paraguai e Uruguai, o temor era de um queda no túnel do tempo. Mas o que ficou claro é que Bolsonaro está sozinho, porque nem a direita da região tem afinidade com ele. Foi com constrangimento que o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, ouviu de Bolsonaro elogios ao ditador Stroessner. O presidente do Chile, Sebastian Piñera, rechaçou o ataque sórdido que Bolsonaro fez à ex-presidente Michele Bachelet ao ofender a memória do pai dela, morto na prisão. Bolsonaro é um extremista só.

Piñera reagiu à violenta explosão de movimentos de rua, contra seu governo, caminhando para o centro e propondo uma solução há muito aguardada no país: a mudança da Constituição. Houve forte comparecimento às urnas neste final de semana, os jovens participaram, num país onde o voto não é obrigatório. A vitória dos que querem uma nova constituição foi esmagadora.

No governo Bolsonaro, como sempre, há a falta de compreensão do que acontece debaixo de seus narizes. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, mostrou desconhecimento ao defender mudança na Constituição brasileira, porque ela teria tornado o Brasil “ingovernável”. O ministro Bruno Dantas, do TCU, sugeriu “estudar um pouco de História e entender a transição democrática deles”. Pois é. O Brasil começou sua transição fazendo uma Constituinte, o Chile só agora abandonará a constituição da época da ditadura.

A Bolívia viveu há um ano um momento de enorme turbulência política que fez temer sua volta ao passado de instabilidade crônica. Na época, houve um debate bizantino sobre se havia sido ou não um golpe. Aqui escrevi que era uma discussão ociosa, porque se os chefes militares se reúnem e vão à televisão exigir a saída de um governante é golpe, evidentemente. O ex-presidente Evo Morales havia errado também por disputar um quarto mandato ao arrepio da constituição e do referendo de 2016. Morales deveria ter feito o natural processo de sucessão dentro do MAS. Seu personalismo agravou a crise. A solução um ano depois foi de recolocar pelas urnas o MAS no governo, mas através de um novo líder, Luis Arce.

A diplomacia brasileira errou o tempo todo com a Bolívia, país com o qual temos uma relação densa. Houve um momento em que a Argentina teve que negociar com o Paraguai o pouso para reabastecimento do avião que levava Evo para o exílio. A diplomacia brasileira, que já solucionou conflitos na região e sempre reconheceu o direito de asilo, ignorou o problema. Agora, foi o último país a reconhecer a vitória de Arce. Piñera foi um dos primeiros.

O debate sobre modificar ou não a Constituição da era pinochetista foi sepultado ontem pelas urnas no plebiscito convocado por Piñera. Quase 80% dos que votaram disseram que é preciso mudar. Começa agora um longo processo. No ano que vem haverá eleição para a Constituinte e depois que ela for redigida será novamente votada. Nesse caminho o Chile pode avançar mais na cicatrização das velhas feridas da era da ditadura militar.

A diferença entre a direita da região e Bolsonaro é que o presidente brasileiro defende a ditadura, o que outros governantes não fazem. Além disso, no seu governo, há pessoas que como ele admiram torturadores. E existem militares remanescentes da pior ala do regime, a do general Silvio Frota, derrotada pelo presidente Ernesto Geisel no dia 12 de outubro de 1977. Nosso retrocesso é muito maior do que nos damos conta.

Ao renunciar ao seu mandato de senador, o ex-presidente uruguaio deixou o legado de palavras que se deve guardar. Entre as várias frases memoráveis destaco aquela que ele dirigiu aos jovens. “Triunfar na vida não é ganhar, triunfar na vida é levantar-se e recomeçar toda vez que cair.” A resiliência, essa é a lição de Pepe. Doze anos preso em condições desumanas, ele viveu o que aconselha.

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