É
um debate falso, fora de lugar e tempo
Não
existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há,
infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa
corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso,
fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.
Advirta-se
— nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha
ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de
um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa
compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que
“ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas
ruas, mas no zap-profundo.
Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.
Diga-se
que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem
campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem
liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da
autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?
A
combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe
a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do
Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade
corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se
vacinar.
O
conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em
quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las
universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se
imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida.
Seria só chamá-la.
Mas
não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão;
como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que
implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como
Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque
sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.
Já
posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos,
depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá:
“Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos
atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do
Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte
garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como
enfrentar a pandemia.
Voltemos
ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista!
—vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da
conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto,
veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá
vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é
sempre detalhe.
Quem
falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do
aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de
certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema,
o algoz imaginário. Prospera assim.
A
falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros
em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta
de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade
brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele
—a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a
hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.
Não
existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada
em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for
a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele
sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do
espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema
se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.
Não
comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime.
Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de
alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto
em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.
Não
me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já
tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo
registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será
brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz
diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.
Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.
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