terça-feira, 27 de outubro de 2020

Pablo Ortellado* - Guerras culturais

- Folha de S. Paulo

Declaração do papa a favor da união civil homossexual não altera engajamento da igreja nas guerras culturais

Causou controvérsia a declaração do papa Francisco a favor da união civil homossexual no documentário "Francesco", que estreou no último dia 21 de outubro na Itália.

Apesar do impacto, a declaração não era nova nem inédita. O papa já tinha dado declarações anteriores em defesa da união civil homossexual e tinha publicamente apoiado uma lei de união civil quando era arcebispo de Buenos Aires.

O posicionamento a favor da união civil na Argentina, porém, era uma tentativa de impedir medida mais ampla, a extensão do direito de casamento, que terminou aprovada no país em 2010.

Já como papa, em 2013, Francisco deu uma declaração demonstrando respeito aos homossexuais no voo de volta de sua viagem ao Rio de Janeiro: "Quem sou eu para julgar?".

A declaração que está no documentário ("O que temos que ter é uma lei de convivência civil. Dessa forma, eles [homossexuais] são legalmente cobertos") foi extraída de entrevista à TV mexicana Televisa, em 2019.

O fato de o trecho não ter ido ao ar em 2019 pode indicar dificuldades políticas. A emissora mexicana alegou que, na época, considerou o conteúdo sem interesse jornalístico, mas a transcrição oficial no site do Vaticano também apareceu editada sem o trecho.

Grupos conservadores reagiram criticamente à declaração publicada agora, dizendo que ela não altera as posições doutrinárias da igreja e cria confusão e incerteza na orientação dos fiéis.

Seja como for, a posição do papa de respeito e acolhimento aos homossexuais tem sido consistente. Mas também tem sido consistente sua batalha em defesa do casamento tradicional entre homem e mulher e contra a chamada "teoria de gênero".

Teoria de gênero é uma construção conceitual da teologia católica que acredita que o feminismo e o movimento LGBTQ —ou pelo menos parte deles— estão engajados em promover na sociedade e nas escolas a ideia de que a distinção entre os gêneros não está assentada na divisão biológica dos sexos, mas que seria apenas questão de opção individual.

Essa crença toma a defesa do respeito à diversidade feita pelos movimentos por uma campanha organizada para embaralhar os papéis de gênero e a orientação sexual das crianças com o intuito de destruir a família.

Embora a declaração do papa no documentário colabore para promover a tolerância com os homossexuais que é bastante presente em países de maioria católica, sua batalha reiterada contra o moinho de vento da teoria de gênero alimenta as guerras culturais e, indireta e involuntariamente, fortalece a posição dos violentos e dos preconceituosos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

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