A
chamada terceira idade encurtou na pandemia
Ubirany
Félix do Nascimento, um dos fundadores do Cacique de Ramos e do Grupo Fundo de
Quintal, duas instituições cariocas, tinha 80 anos quando teve a vida ceifada
por complicações decorrentes da Covid-19. No Brasil que viu a longevidade da
população aumentar ininterruptamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o
inventor do repique de mão — instrumento que saiu do subúrbio carioca para
ganhar o mundo em rodas de pagode, estúdios e palcos — teria esbanjado saberes,
talento e afeto por mais uma década. Antes da pandemia, era de 9,8 anos o
horizonte de vida dos que chegavam aos 80. Mas a tragédia sanitária que levou o
artista e, até aqui, quase 185 mil brasileiros está encurtando a existência dos
brasileiros, sobretudo dos idosos.
Com
base nas estatísticas do Registro Civil, a demógrafa Ana Amélia Camarano, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou o impacto da pandemia
— ainda mais mortal por mal gerida, a começar pelo ocupante do Palácio do
Planalto — na expectativa de vida da população. Antes da crise sanitária, um
brasileiro nascido em 2019 viveria em média 76,5 anos, estimara. Os óbitos aos
milhares pela Covid-19 — até fim de novembro, 177,3 mil formalizados em
cartórios — reduzirão a longevidade em 1,9 ano, projeta agora. Como três
quartos (76,7%) dos mortos pela doença tinham 60 anos ou mais de idade, nesse
grupo a existência será diminuída em 1,7 ano. Em vez de mais 23,7 anos, 22.
“A pandemia está causando mortalidade precoce. Dá para dizer que a chamada terceira idade encurtou, porque a letalidade é muito maior nas faixas de 70-79 e 60-69 anos, respectivamente. Está havendo interrupção de um processo de redução da mortalidade e de aumento da expectativa de vida que ocorria, sistematicamente, desde os anos 1950”, relata Ana Amélia, uma das principais especialistas do Brasil em envelhecimento populacional.
Por
causa da Covid-19, ela está refazendo todas as projeções sobre quantidade de
habitantes e faixa etária dos brasileiros. Até aqui, 0,5% dos cerca de 29 milhões
de idosos do país perderam a vida. Nos primeiros meses da pandemia, a demógrafa
já alertava para o risco socioeconômico dessas mortes. Em 12,9 milhões de lares
(18% do total), os mais velhos são a principal — e mais segura — fonte de
rendimentos. No país todo, um em cada cinco domicílios tem pelo menos metade
dos ganhos oriundos do trabalho ou de benefícios sociais de um idoso. Reflexo
de aposentadorias, pensões e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a
indivíduos na pobreza extrema.
A
morte súbita do responsável financeiro aumenta a vulnerabilidade social das
famílias. E a situação tende a se agravar na virada do ano, quando chega ao fim
o auxílio emergencial, já reduzido de R$ 600 para R$ 300 de setembro em diante.
Inestimável é o que se perde em memória, cultura e história, quando um mais
velho se vai. Ana Amélia lembra a frase emblemática que ouviu, anos atrás, de
Kofi Annan (1938-2018), ex-secretário-geral da ONU: “Quando morre um idoso,
perde-se uma biblioteca”.
Uma
coleção de saberes nos foi arrancada pela existência encurtada de gênios como o
sambista Ubirany e Aldir Blanc, para ficar num par de exemplos. O compositor e
escritor morreu de Covid-19 em maio, aos 73; teria mais década e meia de vida
pela tábua de mortalidade do Brasil.
José
Eustáquio Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em demografia, informa
que os efeitos da pandemia atingirão mais intensamente os homens brasileiros,
maioria entre os mortos. Eles terão a expectativa de vida reduzida em 1,6 ano;
mulheres, em 1,2. “Essa redução por causa da Covid-19 vai fazer o Brasil cair
mais no Índice de Desenvolvimento Humano de 2020”, alerta. Esta semana, o
Pnud/ONU informou que país perdeu cinco posições no ranking do IDH 2019. Saiu
de 79º para 84º, na lista de 189 países.
O
indicador acompanha longevidade, renda per capita, permanência na escola e anos
de estudo. O Brasil, no ano passado, avançou só nos dois primeiros. A pandemia
aniquilou o ano letivo de 2020 e carrega a perspectiva de aumento do abandono
escolar no próximo. A inflação no preço dos alimentos ameaça o poder de compra
da metade mais pobre da população, e o desemprego galopante, a renda das
famílias. Perde-se, agora, promessa de vida. Uma lástima.
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