A
covid-19 agravou e muito nossa miséria humana, a dos pobres de tudo, as vítimas
da pandemia de carências, filhas do neoliberalismo econômico excludente
O
coração dos brasileiros que o têm, que são os acostumados a se preocupar com os
outros, certamente terá um cuidado adicional com o não pequeno número dos
moradores de rua. Os confinados no meio de ninguém, cidadãos de país nenhum, os
órfãos de pátria. A covid-19 agravou e muito nossa miséria humana, a dos pobres
de tudo. As vítimas da pandemia de carências, filhas do neoliberalismo
econômico excludente.
A
brutal realidade desumanizadora dos moradores de rua ficou dolorosamente
evidente nos resultados de uma pesquisa sociológica de emergência, realizada na
cidade de São Paulo no mês de novembro e parte de dezembro.
Foi
ela proposta e coordenada pela professora Fraya Frehse, do Departamento de
Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo e acolhida no Instituto de Estudos Avançados.
Há
anos ela se dedica ao estudo das ruas da cidade e dos costumes de sua
população. Teve como auxiliar de coordenação a dra. Maria Antonieta da Costa
Vieira, antropóloga pela Unicamp, reconhecida especialista no tema, que há 30
anos coordenou a primeira pesquisa ampla sobre a população de rua na cidade.
A
realização da etnografia sobre “Morar nas Ruas de São Paulo Durante a Pandemia
de Covid-19” reuniu 28 pessoas, a maioria jovens doutorandos das ciências
sociais, da USP e da Universidade Federal do ABC.
A pandemia, em vários casos, alterou a condição dessa humanidade para pior. Melhorou apenas nas providências oficiais localizadas e insuficientes, como a de instalar equipamentos propriamente domésticos em certos lugares, e não em outros, como lavadoras, pias, sanitários.
Mas
isso só resolverá o problema se, permanentemente, o poder reconhecer que uma
nova cidade está nascendo ao ar livre, para abrigar a humanidade dessa nova,
inventiva e diferente sociabilidade, nova concepção de família, de comunidade e
de direitos sociais. As providências da emergência mostram que é possível
reinventar a cidade para torná-la lugar de todos que dela carecem.
Uma
das pesquisadoras chamou a atenção dos participantes para as particularidades
da situação das mães de rua. São mulheres que trabalhavam e durante o dia
podiam deixar os filhos nas creches da prefeitura. Com a covid-19, as creches
foram fechadas, as mães tiveram que deixar de trabalhar para ficar com as crianças.
O serviço público brasileiro não foi feito para atender uma sociedade de gente
abandonada. O brasileiro de referência do Estado é o que tem por perfil o
funcionário público, a classe média.
Moradores
de rua não abrem mão dos critérios de decoro e das regras de civilidade que as
faz tão humanas quanto as demais pessoas ou até mais. Tenho confirmado isso em
conversas com eles. Porque tem melhor compreensão do que esta sociedade é na
medida em que vivem as irracionalidade e contradições que as vitimam.
O
auxílio emergencial lhes trouxe algum alívio. Mas, para ter direito a ele, é
necessário fazer o cadastramento por meio do telefone celular. Ora, a maioria
dessas pessoas não tem celular, e, se o tem, não tem acesso à internet. Os
sábios do Ministério da Economia tomam decisões para ajudar seres imaginários,
os do “tuíter” presidencial, não seres de carne e osso, que não raro não têm
sequer o que comer.
Uma
das queixas, especialmente das mães, é a de que tem abrigo num bairro, mas o
local de dar banho nos filhos é no centro da cidade, para o que precisam do
dinheiro, que não têm, para a condução.
A
pandemia provocou ações públicas e privadas de socorro e emergência. Há muitos
seres humanos na cidade que enxergam os outros humanos que estão na rua. Muitos
moradores de rua foram nela viver porque, desempregados, não tiveram mais como
pagar o aluguel de suas casas e foram despejados.
Com
a pandemia, encontrar um trabalho, mesmo trabalho precário, ficou literalmente
impossível. Guardadores de carros na rua, que ganhavam alguns trocados todos os
dias, descobriram que as ruas ficaram vazias, já não há mais carros para
guardar.
Os
grandes especialistas da economia oficial tudo calculam e tudo preveem em
função do Brasil oficial, um país cada vez mais de ficção, e não em função do
Brasil real, que é o país que mais precisa de socorro. Um país governado pela
tirania de um abstrato modelo econômico feito para proteger o lucro de alguns,
mas não para beneficiar a sociedade.
Por
esse caminho, um número crescente de brasileiros está mudando para a rua.
Desenvolve ali uma nova e diferente sociabilidade, autodefensiva e inventiva,
nova concepção de família e de comunidade, outra concepção de Brasil, um Brasil
sem instituições públicas, provavelmente o Brasil da democracia direta e
popular. O Brasil do acaso.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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