Nada
mais há a se admirar com este governo demente. Há de tudo
Enorme
surpresa, posso mesmo dizer estupefação, teve o arquiteto Michel em uma agência
dos Correios, na Vila Madalena. Levou, como faz todos os anos, e coloquem anos
nisso, o primeiro lote das centenas de cartões de Natal desenhados por ele e
pela Ciça Barbieri, sua mulher e também arquiteta. Todos os anos, o grupo de
amigos espera para ver o que a dupla criou, ambos são designers de alto humor.
Michel chegou à agência e encontrou o usual. Pessoas esparramadas, quase
aglomeradas na calçada, porque, segundo o protocolo, não podem entrar. E se
amontoam para poder descobrir a chamada do número da senha.
Ainda
bem que a tal pandemia está no final, segundo o nosso presidente. Afinal, são
apenas 180 mil mortos e mais mil a cada dia. Falando em presidente, agora temos
mais um filho, o 04. Logo chegaremos ao 007, que terá licença para matar.
Finalmente, Michel foi atendido e a funcionária passou um tempo conferindo
cartão a cartão. “Estou a conferir os destinos, explicou.” Coisa que jamais
vimos. Conferir destinos? Indagada, ela revelou:
“Se
for para o México, Colômbia e Turquia não posso aceitar.”
Michel
levou um susto. Qualquer um de nós levaria, pensando nas loucuras do Ernesto
Araújo, o chanceler que acredita que a terra é plana e a ciência uma charlatanice.
“Por
quê? Estamos em guerra com tais países?”
“Não
sei se é guerra, ou o que é! Só sei que o correio está sem comunicação com
vários destinos e estes três estão no seu pacote.”
Nada
mais há a se admirar com este governo demente. Há de tudo. Pois o casal
presidencial não exibe em uma vitrine o terno e o vestido da posse? O terno
nada tem de especial. Não é londrino, de Saville Row, nem feito sob medida em
Roma, ou com o Diógenes Estilista que, no Rio, atendeu a vida inteira o Roberto
Marinho, além de ser quem sempre faz os fardões da Academia Brasileira. Um
craque.
Ele,
o terninho presidencial, pode ter sido comprado no Mappin, na Exposição, na
Mesbla, na Isnard, na Sears, no Eron (pioneiro dos crediários), na Cassio
Muniz... Epa! Estou delirando, essas lojas desapareceram há décadas, era onde
comprávamos a prestação. Mas este governo parece daquela época, estamos andando
para trás no tempo. Quantos anos regredimos neste período bolsonarista? Quanto
ao vestido da primeira dama, deve ter sido comprado com aquele cheque de 89 mil
reais, que ninguém explicou.
Há
mais a se admirar. Dias depois, Michel levou ao correio a segunda parte dos
cartões e pediu 80 selos. A funcionaria avisou.
“Oitenta? Meu senhor, lamento, não tem nenhum.”
“Nenhum?
Alguém comprou todos? O estoque inteiro? Ou existe cota para cada cidadão?”
“Não
tem cota coisa nenhuma. Não há selos. Simples assim.”
“Simples?
Isso é uma catástrofe. Como não há selos?”
“Acabaram.”
“Acabaram?
Correio sem selo é sorveteria sem sorvete, farmácia sem remédio, igreja sem
pastor pedindo dízimo...”
“Meu
senhor, entenda. Fomos vendendo, as pessoas foram comprando, lambendo e colando
nos envelopes. Quando vimos, não tinha mais nenhum.”
“Como
assim? Parece o ministro Guedes. Não tem previsão de nada? Uma semana atrás
trouxe um pacote de 60 cartões e foi tudo bem.
“Meu
senhor, não entende português? Não temos. Nenhuma agência tem. Ninguém tem, não
há previsão de reposição.”
Encasquetado
(palavra que ele aprendeu em Araraquara, onde conheceu Ciça), meu amigo, que é
calmo mesmo diante das maiores anormalidades – e todos sabemos que estamos
vivendo o anormal dentro do normal –, voltou à carga.
“Minha
boa senhora. Em qualquer comércio, quando falta um produto, o proprietário
procura repor. Ou haverá um problema, o dinheiro não entra.”
“Sei
disso. Todos sabem. Pedimos os selos, mas comunicaram que não há mais.
Acabaram.”
Vai
ver, pensou Michel, o papel acabou quando imprimiram as notas de 200, as do
Lobo Guará, que ninguém viu, e quem viu não quer, porque ninguém troca.
“Pediram
a quem?
“Sei
lá, acho que ao chefe do depósito, ou ao gerente, ou ao presidente da
organização. Não sei, o controle de material não é comigo. Eu só recebo cartas
e vendo selos. Estou muito chateada, toda hora tenho de explicar.”
“Não
havia selos em outras agências? Para emprestar.”
“Olhe,
me desculpe. Chega. O senhor pergunta sem parar, a conversa demora, preciso
atender outros clientes. Por favor, volte depois.”
Michel
retirou-se. Algum dia, há de enviar seus cartões, eles chegarão com meses de
atraso, talvez anos, décadas. Pode ser que cheguem antes do centenário da
Independência. Porque imagino que estamos atrasados assim. E agora meu amigo
preocupa-se, pensa em vacinas, que logísticos como o general-ministro confundem
com vaginas. Ele reflete e teme como será a vacinação/não vacinação, com
armazenamento a 70 graus negativos. Mas, e se faltar geladeira com tal
temperatura?
Feliz
Natal junto aos seus.
Junto
ao seu ou a sua.
A
você consigo mesmo.
*É jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás País nenhum'
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