Julgamento
no tribunal contrasta com irracionalidade anticientífica que emana do Palácio
do Planalto
Acertou
o Supremo Tribunal Federal (STF) em garantir a estados e municípios o direito a
impor a vacinação obrigatória contra a Covid-19. É o que determina a lei da
pandemia, aprovada pelo Congresso em fevereiro. É o que combina com o espírito
da leis de imunização em vigor desde 1975. E, mais que isso, é o que preconizam
a ciência, a razão e o bom senso. A vacina obrigatória é uma conquista
civilizatória de que a humanidade já não poderia abrir mão numa situação de normalidade.
Que dizer de uma pandemia que já matou de modo inclemente quase 185 mil
brasileiros?
A
decisão do Supremo contrasta com a irracionalidade que emana do Palácio do
Planalto em relação não apenas às vacinas, mas a todo conhecimento científico.
Mais uma vez, em desafio aos protocolos sanitários, o presidente Jair Bolsonaro
imprecou esta semana contra a vacina em São Paulo diante de uma aglomeração de
centenas de pessoas, a maioria sem máscara.
As campanhas antivacinação e a resistência do bolsonarismo às vacinas — em particular à CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a chinesa Sinovac — têm contribuído para instilar na população brasileira uma resistência antes impensável a uma prática essencial para a saúde pública. Em poucos meses, a parcela de brasileiros afirmando que tomará a vacina contra a Covid-19 caiu de 89% para 73%, de acordo com o Datafolha.
Vacinação
obrigatória, como afirmou com propriedade o relator de uma das ações, ministro
Ricardo Lewandowski, é diferente de vacinação forçada. A obrigatoriedade
confere ao Estado não o poder de enfiar agulhas nos braços de quem não quer se
vacinar, como faz crer a campanha de desinformação das hostes bolsonaristas.
Mas sim de impor sanções, como restrições no acesso a serviços ou benefícios.
A
justificativa para impor tal obrigação é a mesma que rege o serviço militar
obrigatório ou os impostos obrigatórios: a defesa do bem comum. A vacina
oferece não apenas proteção ao indivíduo que a toma, mas também a toda a
comunidade. Quanto mais imunes houver, mais difícil o contágio. A partir de
certo ponto, o vírus some por não ter mais quem infectar. Quem não toma vacina
se beneficia disso sem arcar com ônus nenhum. Mais que isso: se porventura
pegar a doença, pode provocar dano coletivo ao transmiti-la, criando novo
surto.
Acertou
também a Corte no julgamento da outra ação, relatada pelo ministro Luís Roberto
Barroso, ao determinar que crenças ideológicas, filosóficas ou religiosas dos
pais não podem impedir seus filhos de ser vacinados. O argumento é o mesmo: o
Estado tem o dever de proteger a saúde de todos.
O
ataque à vacina obrigatória é um retrocesso. Traz ecos da Revolta da Vacina, de
1904, quando multidões se recusavam a cumprir com a obrigação de se vacinar
contra a varíola. Não deu outra: quando a varíola voltou a atacar, em 1908,
houve um morticínio, e a população correu para se vacinar. É o que sem dúvida
deverá ocorrer assim que estiverem aprovadas e disponíveis as vacinas contra a
Covid-19.
Assassinato de jovens em Belford Roxo expõe deficiência policial – Opinião | O Globo
É
urgente que polícias passem por um saneamento para tirar as manchas que turvam
sua imagem
Os
assassinatos dos jovens Jordan Luiz Natividade, de 18 anos, e Edson Arguinez
Junior, de 20, em Belford Roxo, no fim de semana, seriam apenas mais dois na
longa lista de crimes sem autoria que o Estado empilha todos os meses, não
fosse a persistência das famílias. Foi a partir de imagens de câmeras de
segurança entregues à polícia pelos parentes que o crime começou a ser
desvendado.
As
imagens mostram os rapazes sendo abordados por dois PMs durante uma blitz, na
madrugada de sábado, quando passavam de moto por uma via de Belford Roxo.
Depois são algemados e levados na viatura. Não se sabe o que aconteceu em
seguida. Os corpos de Jordan e Edson foram encontrados noutro local com sinais
de execução.
O
cabo Julio Cesar dos Santos e o soldado Jorge Luiz da Costa, que participaram
da abordagem, estão presos. O juiz Rafael de Almeida Rezende, que decretou a
prisão, disse que há fortes indícios de que os PMs, “com o objetivo de encobrir
uma abordagem malsucedida, deram cabo da vida das vítimas”.
Em
depoimento, os PMs alegaram que, pouco depois de levarem os jovens, resolveram
liberá-los, porque concluíram não haver problemas com eles. Chama a atenção que
o caso não tenha sido relatado ao batalhão da área e que não haja registro em
delegacia.
O
assassinato dos dois jovens, negros, pobres e sem antecedentes, é mais um caso
que expõe as deficiências da polícia do Rio. Nesse caso, não se pode dizer que
as instituições não tenham agido. O próprio batalhão de Belford Roxo usou o GPS
para analisar o trajeto da viatura, o que contribuiu para a investigação. Não
fossem as câmeras de segurança, seria mais um caso a ir para a vala comum da
impunidade.
Segundo
dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio registrou ano passado
1.810 mortes decorrentes de intervenções policiais, o maior número entre as 27
unidades da Federação. Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança
mostra que 86% das vítimas eram negras. Em outubro, quando já estava em vigor a
decisão do STF que proíbe operações policiais em comunidades do Rio durante a
pandemia, o estado registrou 145 mortes por intervenção de agentes do estado, o
maior número dos últimos seis meses.
PMs
são pagos pelo Estado para proteger os cidadãos — todos os cidadãos. Não para
discriminá-los ou para agir de forma criminosa. Claro que seria injusto
estigmatizar a polícia toda pela suspeita que paira sobre dois integrantes. Mas
é evidente que há falhas gritantes na seleção e no treinamento dos agentes. É
urgente que as polícias passem por um saneamento capaz de tirar as manchas que
pesam sobre sua imagem e de resgatar seu papel: proteger a população, não matar
inocentes.
O presidente que calculava – Opinião | O Estado de S. Paulo
Só
cálculo político explica a atitude “conciliatória” de Jair Bolsonaro sobre
vacinação, quando pesquisa mostrou queda de sua aprovação
O presidente Jair Bolsonaro não é muito bom em fazer contas – não sabe dizer exatamente, por exemplo, quanto dinheiro o amigão Fabrício Queiroz depositou na conta da primeira-dama –, mas é craque em cálculo político. E foi por puro cálculo que Bolsonaro mandou seu ajudante de ordens Eduardo Pazuello, o intendente que nominalmente é ministro da Saúde, garatujar um assim chamado “plano” de vacinação contra a covid-19, apresentado com fingida pompa na quarta-feira, dia 16, no Palácio do Planalto – evento em que a única coisa autêntica era o Zé Gotinha.
Na
encenação em que pretendia desempenhar o papel de chefe de Estado ciente de
suas responsabilidades, Bolsonaro nem parecia o inconsequente que passou os
últimos dias a desestimular os brasileiros de tomar vacina.
“É
um momento muito feliz para todos nós, brasileiros”, discursou Bolsonaro a
propósito do lançamento do tal “plano”. Seria mesmo, se se tratasse de algo que
se assemelhasse a um planejamento concreto, mas o que foi apresentado é um
amontoado de contradições e lacunas, que mais confundem que esclarecem.
É
óbvio que a intenção de Bolsonaro nunca foi a de preparar o País para uma
campanha de vacinação que ele sabota com denodo há muito tempo, para enfrentar
uma pandemia que ele minimizou desde sempre. É preciso uma dose cavalar de
polianismo para crer que o presidente tenha se tornado “conciliador” e
subitamente mudado de ideia a respeito do que, até horas antes, demonstrava
plena convicção.
Só
o puro cálculo político explica sua atitude: no dia do anúncio do plano de
vacinação, saiu uma nova pesquisa de opinião sobre Bolsonaro, e o resultado não
poderia ser pior para o presidente. Sua aprovação caiu de 40%, em setembro,
para 35%, agora, obviamente como resultado direto de sua péssima condução da
crise.
Além
disso, mas não menos importante, o anúncio do plano de vacinação foi feito na
véspera do pagamento da derradeira parcela do auxílio emergencial. Destinado a
socorrer os cidadãos que ficaram sem renda em razão da pandemia, foi justamente
esse auxílio que havia dado algum impulso à popularidade de Bolsonaro; sem ele,
milhões de brasileiros afundarão na pobreza.
Está
claro que Bolsonaro, incapaz de ter empatia com qualquer um que não seja de sua
família, não se preocupa nem com a saúde nem com a renda de seus compatriotas,
a não ser na exata medida de seus objetivos eleitorais. O plano de vacinação,
evidentemente improvisado, serve somente para dar aos brasileiros desarvorados
alguma esperança de “volta à normalidade” no momento em que já não poderão
contar com a ajuda federal.
Serve
também para que Bolsonaro tente anular os eventuais ganhos políticos de seu
principal desafeto, o governador paulista, João Doria, que mostrou mais
agilidade na corrida pela vacina. Não à toa, no lançamento do tal plano de
vacinação, ao qual Doria não compareceu, o presidente fez questão de destacar
essa ausência logo no início de seu discurso e de dizer que os demais
governadores ali presentes indicavam a “união para buscar a solução de algo que
nos aflige há meses”.
Nesse
seu tour de force de
dissimulação, Bolsonaro ensaiou até um mea-culpa sobre seus “exageros”, mas
disse que os cometeu, vejam só, “no afã de buscar solução”. E então emendou
dizendo que “nós todos, irmanados, estamos na iminência de apresentar uma
alternativa concreta para nos livrarmos desse mal” – contra o qual, até o dia
anterior, Bolsonaro receitava cloroquina, seu elixir milagroso.
Mas
a apoteose desse espetáculo burlesco coube ao ministro da Saúde, Eduardo
Pazuello. “Eu não vejo nada de errado no que está acontecendo (na condução do governo durante a pandemia)
e, se tivesse visto, já teria corrigido”, disse o personagem. Para completar,
citando a capacidade do Brasil de organizar programas de imunização,
questionou: “Para que essa ansiedade, essa angústia?”.
De
fato, se os mais de 180 mil mortos, os milhões de doentes e a economia em
frangalhos não são motivos suficientes para angustiar os brasileiros, a
perspectiva de mais dois anos desse inacreditável governo certamente é.
Perdendo
o ritmo – Opinião | O Estado de S. Paulo
FGV
confirma perda de impulso da economia depois da forte reação inicial
Criar condições para a economia crescer em 2021 é uma das principais tarefas do governo, neste momento, e a passagem para o próximo ano poderá ser mais complicada do que se esperava há um ou dois meses. Depois da forte reação inicial ao desastre de março-abril, a recuperação tem perdido impulso. O balanço geral do terceiro trimestre, com expansão de 7,7% do Produto Interno Bruto (PIB), ainda mostrou uma forte retomada, mas os dados mensais já indicavam uma acomodação. A perda de vigor ficou ainda mais clara no começo do trimestre final. Em outubro, o crescimento mensal ficou em apenas 0,6%, a menor taxa depois de abril, segundo o Monitor do PIB publicado na quarta-feira pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Dois
dias antes o Banco Central havia apresentado seu Índice de Atividade Econômica (IBC-Br). A
estimativa de 0,86% de avanço mensal em outubro já apontou uma desaceleração,
mas o cálculo da FGV mostrou um quadro ainda menos positivo. Mais detalhado,
o Monitor tem
sido, com frequência, a melhor antecipação dos valores oficiais do PIB,
divulgados a cada trimestre pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
O
dado mensal da FGV foi 2,7% inferior ao de um ano antes. No trimestre móvel
terminado em outubro o PIB foi 6,4% maior que no período de julho a setembro e
3,1% menor que o do período correspondente de 2019.
O
menor vigor também é visível quando se decompõe o conjunto do PIB. Só 6 das 12
atividades componentes tiveram variação positiva em relação a setembro e também
na comparação interanual, como ressaltou o coordenador dessa pesquisa, o
economista Claudio Considera.
A
desaceleração já havia sido indicada pelos dados setoriais publicados
mensalmente pelo IBGE. Em outubro a produção industrial foi só 1,1% maior que
em setembro. Foi a menor taxa desde o começo da recuperação, em maio. A maior,
de 9,6%, foi a de junho. A partir daí o ritmo da retomada diminuiu mês a mês,
tendo chegado a 2,8% em setembro.
Também
a perda de fôlego do varejo havia sido apontada pelo IBGE, com a taxa de
crescimento caindo seguidamente desde a taxa de 12,2% em maio. A menor, de
0,5%, ocorreu em setembro, e houve um repique em outubro (0,9%). Falta
verificar se terá prevalecido um ritmo mais forte nos dois meses finais do ano,
mas as condições financeiras das famílias tornam improvável uma nova fase de
animação do consumo.
O
pior cenário continua sendo o dos serviços, ainda abaixo, em outubro, do nível
de atividade anterior à pandemia. O setor despencou 19,8% no período de
fevereiro a maio e depois disso acumulou crescimento de apenas 15,8%.
O
consumo das famílias no trimestre móvel findo em outubro ficou 4,4% abaixo do
nível de um ano antes, de acordo com o Monitor.
A maior queda, de 6,2%, ocorreu no consumo de serviços. O melhor resultado
apareceu nas compras de bens não duráveis, com alta de 1,4% na comparação
interanual.
No
mesmo tipo de confronto, a exportação de bens e serviços no trimestre móvel
terminado em outubro foi 6,5% menor que um ano antes. Só as vendas externas de
bens de consumo apresentaram variação positiva, com expansão de 21,1%. A
importação geral foi 23% inferior à de agosto-outubro de 2019. O núcleo das
contas externas continuou sólido, portanto, e assim provavelmente seguirá no
próximo ano, embora com saldo mais modesto.
A
reação econômica a partir de maio dependeu essencialmente do mercado interno,
animado pelo consumo familiar. Mas dezenas de milhões de famílias tiveram menos
dinheiro para gastar no quarto trimestre, por causa da redução do auxílio
emergencial a partir de setembro. Além disso, o desemprego permaneceu muito
alto, prejudicando os ganhos e a segurança dos consumidores.
A
inflação mais acentuada, outro importante fator negativo, diminuiu o poder de
compra da maior parte das famílias. A alta do custo da alimentação afetou mais
duramente os mais pobres, limitando mais severamente os tipos de bens e
serviços consumidos. As condições de consumo são um dos principais fatores de
incerteza em relação a 2021.
Oportunidade histórica perdida – Opinião | O Estado de S. Paulo
Congresso
reuniu condições especialmente favoráveis para as reformas em 2019 e 2020
Diante das atuais negociações e previsões envolvendo as presidências da Câmara e do Senado, é impossível não reconhecer que o Congresso, nos últimos dois anos, reuniu condições ímpares – historicamente muito raras – para a realização das reformas de que tanto o País precisa. Ao mesmo tempo, é também inegável a constatação de que o governo de Jair Bolsonaro conseguiu a proeza de desperdiçar acintosamente essa raríssima oportunidade.
Em
primeiro lugar, as eleições de 2018 promoveram uma renovação inédita do Congresso.
Cansada das administrações e escândalos petistas, a população elegeu muitos
novos parlamentares dispostos a repensar e a rever leis e políticas públicas,
sem as amarras e condicionamentos que tantas vezes emperram o andamento das
reformas legislativas. Sem nenhum ufanismo, é possível afirmar que poucas vezes
se viu na história recente do País um Congresso tão independente, por exemplo,
das pressões de corporações públicas como o da legislatura iniciada em 2019.
Além
disso, e aqui reside o grande diferencial relativo aos anos de 2019 e 2020, a
Câmara dos Deputados contou com uma presidência alinhada com as prioridades do
País. Não significa, logicamente, que não tenha havido falhas ou erros no
período. O fato é que a atuação do deputado Rodrigo Maia, ao longo dos últimos
dois anos, esteve incontestavelmente orientada para a realização das reformas.
A
circunstância especialmente favorável às reformas aqui não foi tanto o
alinhamento pessoal do presidente da Câmara com as prioridades sociais e
econômicas do País, mas sua capacidade de coordenar e angariar apoio político
em torno de projetos legislativos muitas vezes impopulares. Isso ficou
especialmente evidente na aprovação da reforma da Previdência, quando o próprio
Palácio do Planalto atuou para esvaziar e deslegitimar a alteração das regras
previdenciárias.
Houve,
assim, nos últimos dois anos, um fenômeno um tanto único no Congresso. Em um
mesmo período, deu-se a coexistência de dois fatores especialmente positivos:
(a) deputados e senadores, em sua maioria, dispostos a apoiar as reformas; (b)
presidência da Câmara extremamente hábil na coordenação e tramitação desses
projetos. A ocorrência de um desses fatores já é difícil; a dos dois juntos,
oportunidade histórica.
E
foi precisamente essa oportunidade que o governo de Jair Bolsonaro perdeu.
Veja-se, por exemplo, a reforma tributária. Poucas vezes o Congresso teve em
mãos uma proposta tão politicamente viável e tão amadurecida, resultado de
longo estudo de especialistas das mais variadas áreas. O governo, no entanto,
preferiu insistir de todas as formas na aprovação de uma nova CPMF,
dificultando enormemente o andamento do projeto.
O
sistema político é outro tema que poderia ter avançado muito no biênio
2019-2020. Durante a campanha presidencial, Jair Bolsonaro prometeu apoiar uma
ampla reforma política que ajudasse a diminuir e coibir o fisiologismo. Como se
sabe, é muito mais fácil aprovar mudanças dessas matérias no início do mandato
do que no período final, próximo a novas eleições. No entanto, nesses dois
anos, o governo de Jair Bolsonaro não fez nada para reformar a legislação,
fosse para melhorar as práticas políticas, fosse para aperfeiçoar a
representação.
As
circunstâncias do Congresso no último biênio foram também especialmente
propícias para a realização da tão necessária reforma da administração pública,
de forma a estabelecer um novo patamar de eficiência e moralidade. O mesmo se
pode dizer quanto às privatizações. O governo federal, no entanto, desperdiçou
tais oportunidades, preferindo dedicar-se, por exemplo, a mudanças populistas
da legislação de trânsito, a ampliar o acesso da população às armas e a
enfraquecer o controle relativo ao meio ambiente.
Nos
dois anos e meio de governo de Michel Temer, muito se fez por meio do
Congresso, apesar de condições políticas absolutamente adversas. Nos dois anos
de Jair Bolsonaro, viu-se o oposto. Poucas vezes foi possível fazer tanto e,
infelizmente, tão pouco se fez.
Abrir torneiras – Opinião | Folha de S. Paulo
Dados
confirmam atraso em saneamento; promissor, novo marco deve ser mantido
Segundo
o levantamento mais recente do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, quase
a metade da população brasileira (45,9%) ainda permanecia sem acesso à rede de
esgoto em 2019.
Embora
o acesso à água seja melhor e atinja 83,7% da população, há grande desnível
entre regiões e renda. Trata-se, inegavelmente, de uma situação vexatória.
A
diferença de acesso é mais uma evidência das décadas de descaso do poder
público com o provimento de serviços básicos. O avanço da cobertura da rede tem
sido lento demais e insuficiente para cobrir a meta de universalização até
2033.
Espanta
que, diante de tais carências, ainda haja defensores do modelo até agora
vigente, com 94% dos municípios atendidos por empresas estatais, muitas vezes
sem nenhuma concorrência ou metas de cobertura e qualidade.
O
debate, felizmente, foi vencido por adeptos de uma ampla modernização
regulatória. O Congresso aprovou neste ano um novo marco para o saneamento, que
abre mais espaço para empresas privadas e amplia a competição.
De
mais fundamental, foi reforçada a competência da Agência Nacional de Águas como
órgão regulador do setor, responsável por definir parâmetros técnicos de
amplitude nacional e regras claras para a concessão dos serviços, seguindo
exemplos bem-sucedidos em outros setores, como energia.
Espera-se
a chegada de investimentos privados de até R$ 700 bilhões nos próximos anos,
com a multiplicação de novas concessões e parcerias público-privadas.
Além
da questão óbvia de saúde pública e bem-estar humano, a ampliação do tratamento
de esgoto faz parte da agenda ambiental em áreas urbanas, tema sempre
negligenciado pelas autoridades.
Com
a competência estadual para definir como serão formatadas as regiões a serem
atendidas numa concessão, parece ter sido adequadamente mitigado o risco de
áreas menos rentáveis ficarem desassistidas, talvez a principal e legítima
preocupação de especialistas com o novo marco.
Um
ponto ainda pendente é a análise do veto presidencial ao dispositivo da lei que
permite a renovação sem concorrência dos atuais contratos de programa por 30
anos, o que poderá atrasar a modernização do setor.
O
tema mobiliza as forças corporativistas no Congresso, que enxergam nas estatais
pouco transparentes um manancial para nomeações e apadrinhamento político.
O
ideal é que o veto seja mantido de modo a assegurar uma rápida renovação dos
contratos e muitas concessões sob a nova metodologia mais exigente. O país não
pode aceitar nada que não seja a rápida universalização dos serviços.
Negação da maconha – Opinião | Folha de S. Paulo
Cartilha
oficial desinforma ao contestar os benefícios medicinais da erva
Distorcer
a realidade, camuflando os fatos com o discurso ideológico, é parte do modus
operandi do bolsonarismo. Embora se saiba que tal conduta conspurca
praticamente todas as áreas da máquina federal, em poucas ela se apresenta de
forma tão explícita como na questão das drogas.
Em
2019, o então ministro da Cidadania, Osmar Terra, censurou pesquisa da Fiocruz
simplesmente por não confirmar a suposta epidemia de crack por ele alardeada —e
mostrar que o problema maior nessa seara reside no álcool.
Partiu
do mesmo ministério, agora sob Onyx Lorenzoni, em colaboração com a pasta da
Mulher, comandada por Damares Alves, a mais recente investida obscurantista
sobre o assunto.
Apresentada
como técnica, a cartilha
publicada pelos dois gabinetes sobre os riscos do uso da maconha
consegue a proeza de tanto ignorar conhecimentos científicos como, em sentido
oposto, fazer afirmações acerca da substância para as quais faltam evidências.
Desconsiderando
a massa de estudos que, de forma mais e menos conclusiva, vêm medindo os
benefícios da cânabis para pessoas com epilepsia, ansiedade, depressão,
esclerose múltipla, demência, dor crônica e náuseas provocadas por
quimioterapia, o documento desinformativo assevera que “não existe ‘maconha
medicinal’”.
Os
pacientes com esclerose múltipla contam, cabe lembrar, com um remédio à base de
derivados da maconha licenciado pela Anvisa. Já para a epilepsia há evidências
sólidas de eficácia, em estudos com robustez estatística.
Não
que inexistam riscos associados ao consumo da erva —e o texto, de forma
correta, menciona alguns, como ingestão acidental por crianças, efeitos no
aprendizado de adolescentes e possibilidade de desenvolver dependência.
Entretanto
o esforço em deturpar prevalece. A assertiva de que a violência e os homicídios
cresceram nos locais em que a maconha foi legalizada, por exemplo, vem calcada
não em artigos científicos, mas num texto de opinião.
Hoje
a maconha para fins medicinais é legal em mais de 40 países ou territórios,
além de 36 estados americanos, e a discussão sobre seus efeitos terapêuticos
caminha em diversas partes do mundo.
No
Brasil, todavia, o preconceito e o conservadorismo obtuso travam o debate
científico e levam sofrimento desnecessário a pacientes de males diversos.
BC avalia transição para política menos acomodatícia - Opinião | Valor Econômico
Resta
definir o timing e a velocidade do aumento dos juros
O
Banco Central começará a subir os juros em algum momento do próximo ano - o
fará antes, se as perspectivas fiscais mudarem claramente para pior, ou
simplesmente não o fará se o freio às atividades pela pandemia se prolongar em
2021. No primeiro caso, a política monetária será inteiramente outra, porque o
BC vê um salto de 3 pontos percentuais na inflação, para 6,4%, no último
trimestre de 2022. Se a pandemia persistir, o IPCA cai a 2,4%.
O
cenário apresentado pelo Copom em sua última ata considera que pelo Focus, a
inflação ultrapassa a meta neste ano e fica abaixo dela em 2021 e 2022, porém
com a ajuda de alta da taxa Selic para 3% no fim de 2021 e 4,5% em 2022. No
cenário com Selic constante a 2%, que pressupõe a mesma taxa de câmbio que o
Focus e projeções idênticas para o comportamento dos preços administrados, o
IPCA ultrapassa a meta em 2020, fica abaixo dela em 2021 e volta a
ultrapassá-la em 2022. Como a defasagem dos efeitos da política monetária varia
de 12 a 18 meses, o BC poderá ter de elevar os juros a partir do segundo
semestre, embora nada assegure que o fará na intensidade projetada pelos
consultores e economistas no Focus.
Os
cenários econômicos traçados do Relatório de Inflação de dezembro continuam a
pressupor “incerteza acima do usual” para 2021, com uma inflação puxada pelos
alimentos que se mostrou “mais forte, persistente e abrangente” do que previa
em setembro. As perspectivas contemplam o céu e o inferno. Há uma segunda onda
da covid-19 que tirará pontos de crescimento no primeiro trimestre do ano e
vacinas a caminho, que podem permitir avanços consistentes a partir da segunda
metade do ano. O governo pode acertar o pé nas reformas ou elas se
inviabilizarem de vez.
No
cenário básico, a economia cresceu mais do que o previsto em 2020, mas não
andará muito rapidamente em 2021. O BC reviu sua projeção para o PIB de 3,9%
para 3,8% e a taxa tem forte carregamento estatístico. Supondo que ele seja de
3,5%, as atividades avançam 0,3% na margem, o que é muito pouco. Uma das razões
é a revisão para baixo do consumo das famílias, que soma dois terços do PIB
(demanda). O BC piorou estimativa para 2020 em relação a seu relatório de
setembro, de queda de 4,6% para outra, de 6%. Em 2021, a mudança foi ainda
maior, de 5,1% para 3,2%. Há o mesmo movimento, mas moderado, no consumo do
governo (20% de peso no PIB).
Para
isso contribuem o aumento do desemprego, o fim do auxílio emergencial e a
estimativa, em estudo especial do relatório de dezembro, de que a poupança
feita nos meses críticos da pandemia não se destinará a gastos tão logo. “Parte
da recuperação esperada do consumo pode não ser imediata, mesmo diante de
avanços no controle do problema sanitário”, estima o BC. Por outro lado, a
vacinação pode acelerar a recuperação do setor mais atingido pela covid-19 -
serviços, mais de dois terços do PIB (oferta), normalizar a produção e
assegurar a aceleração do crédito (15,6% em 2021).
O
início da recuperação da economia trouxe aumento de preços por uma conjunção de
fatores: forte desvalorização do real, desorganização de cadeias produtivas e
de distribuição pela pandemia, aumento do consumo pelo auxílio emergencial,
principalmente de alimentos, mas não só, valorização das commodities, saída do
fundo do poço do setor de serviços etc. Com isso o BC errou o alvo em 1,44% na
estimativa de inflação trimestral (até novembro). Em dezembro ela será alta e,
em 12 meses, chegará a 5,7% no segundo trimestre de 2021, acima até mesmo do
intervalo de tolerância da meta (1,5%).
A
média dos núcleos de inflação foram a extremos em questão de meses - de 1,83%
em junho, abaixo do piso da meta, para 5,14% agora. Em 2020, o IPCA fechará em
4,3%. O BC só não terá de agir se a economia for pior que o previsto, uma
possibilidade. Se evoluir como o esperado, terá de subir os juros, também por
outras métricas que divulgou. O hiato do produto encerra o ano em -3,9%, mas o
BC estima que ele será zerado em 2022, isto é, não será mais necessária uma
política monetária fortemente estimulativa como vem praticando. A taxa de juros
neutra (que não acelera nem reduz as atividades) calculada pelo BC é de 3% -
que pode ser para onde a Selic rumará. Resta definir o timing e a velocidade do
aumento dos juros, dentro das premissas desenhadas pelo BC.
Mas há grande incerteza não só sobre a pandemia. O presidente Jair Bolsonaro inicia a segunda metade de seu mandato e as reformas mal andaram. O fantasma do fim da âncora fiscal não foi embora e isto muda tudo.
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