A
mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da
extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos
próximos anos
Ao
refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha
cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de
Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida,
numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para
definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela
morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da
vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no
Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais
amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.
A
principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais
de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil
mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de
destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes
efeitos.
O
primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade
contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e
famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final
das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de
reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento
das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”
Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.
Destacaria
cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a
partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como
emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a
preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta
para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais
polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da
importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no
curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político.
Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de
opinião irá mudar substancialmente.
A
revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a
covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da
vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão
barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para
os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais,
com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o
sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso
não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras
epidemias famosas.
Uma
vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como
consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão
ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de
frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em
manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem
atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro
no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo,
porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente,
especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.
A
pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais.
A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica
ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do
dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai
crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a
levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser
vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos
básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável
pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de
coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos
sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver
seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da
vida.
O
maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a
lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não
obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar
gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à
consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão
exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços.
Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de
funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.
A
pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de
uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de
desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e
do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e
assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não
foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e
mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de
um não rotundo contra a ordem desigual atual.
Essa
quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na
agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça
não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades
mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de
sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha
que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam.
Você irá se surpreender.
A
agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento
que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior
acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo.
Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela
polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia
política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância,
a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância.
Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de
transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a
realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de
veracidade.
E
como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro
do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou,
nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua
ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os
problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica
desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos
mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e
as instituições.
O
pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas
que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos
para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa
razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas
suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa
vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de
uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o
mundo nos próximos anos.
Inaugurar
um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser
contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites
se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas
também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa
quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança
Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que
representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor
significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim
estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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