Não
é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas
concretas de articulação autoritária
Com
o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente
Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do
Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não
ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais.
Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados,
acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso
Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela
democracia e pela liberdade.”
Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.
Ainda
na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço
qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa
Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.
O
que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas
distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades
sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e
não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda,
na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia
política dos entes federados?
Bolsonaro
é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente
- e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma.
Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da
redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam
e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças
Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de
democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com
um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a
forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se
curvam.
Alguém
poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está
na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O
problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular.
Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do
governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais
e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo
contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara
a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê
como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.
Fossem
apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o
presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em
cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o
Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo
grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento,
reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças
Armadas.
Já
com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos
na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente
os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas
até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não
apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto
privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como
ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao
vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na
violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de
Bolsonaro enreda o país.
Em
paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma
desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para
desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de
participação democrática e noções de convivência política e social. A
devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e
intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes
evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas
governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.
Esse
desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e
ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos
caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então
candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz,
por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço
para aventuras.
O
contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente,
atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de
imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele
representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela
frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da
República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e
penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da
destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo
bolsonarismo.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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