Após minimizar pandemia durante um ano, presidente afirma que sempre combateu o vírus
Thiago
Amâncio, Isabela Palhares, Phillippe Watanabe / Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez um pronunciamento em cadeia nacional na noite desta terça-feira (23), mesmo dia em que o Brasil cruzou pela primeira vez a marca das 3.000 mortes registradas em 24 horas, para defender sua gestão no combate à pandemia do novo coronavírus, iniciada há pouco mais de um ano.
Com
o aumento desenfreado no número de mortes no país, onde já morreram quase 300
mil pessoas (100 mil apenas de meados de janeiro até agora), Bolsonaro tem
sido pressionado a modular seu discurso sobre a crise sanitária no país,
cuja gravidade, além de deixar uma montanha de mortos, afeta as perspectivas
econômicas, sociais, políticas e de relações exteriores do país, cada vez mais
isolado.
No
pronunciamento, de quatro minutos, o presidente disse que seu governo é
"incansável" no combate ao vírus —que por 12 meses ele minimizou— e
se solidarizou com as famílias e amigos das quase 300 mil vítimas, após ter
debochado do temor e do luto da população em diferentes ocasiões.
A Folha checou como 11 afirmações de Bolsonaro no discurso desta terça se comparam com suas declarações passadas, suas ações e a realidade da pandemia.
“Em nenhum momento o governo
deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus quanto
para combater o caos na economia, que poderia gerar desemprego e fome”
O
presidente Bolsonaro pessoalmente
minimizou a pandemia em diferentes ocasiões. Em março de 2020, afirmou que
“está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, “não é isso tudo que a
grande mídia propaga” e que “não podemos entrar numa neurose, como se fosse o
fim do mundo.” Ademais, ele próprio provocou aglomerações e recusou usar
máscaras.
Além
disso, seu governo apostou no uso de remédios sem eficácia comprovada contra a
doença, como a hidroxicloroquina.
Na
parte econômica, o governo federal propôs um auxílio
emergencial mais tímido do que o que foi aplicado. Em março, a gestão
Bolsonaro havia proposto uma ajuda de R$ 200, depois subiu para R$ 300, e o
Congresso aumentou para R$ 600.
De
acordo com dados da plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de
Oxford, o Brasil é o quinto país que mais aplicou doses em números absolutos,
atrás de Estados Unidos, China, Índia e Reino Unido.
Quando
se analisa o número de doses aplicadas por mil habitantes, no entanto, o Brasil
aparece na 73ª posição, atrás de outros países como Israel, que encabeça a
lista, países europeus e mesmo os latinos Panamá e Argentina.
Dados
do consórcio de veículos de imprensa mostram que só 2,69% da população
brasileira acima de 18 anos recebeu a segunda dose da vacina, podendo, dessa
forma, ser considerados efetivamente imunizados.
O
consórcio junto às secretarias estaduais de saúde também apontam que 12,8
milhões de pessoas já receberam ao menos uma dose da vacina. O próprio
Ministério da Saúde apresenta em seu site um número diferente do informado pelo
presidente. De acordo com a pasta, 11,4 milhões de pessoas receberam ao menos
uma dose do imunizante, e 30 milhões de vacinas foram distribuídas pelo país.
“Em julho de 2020, assinamos um acordo com a
Universidade Oxford para produção na Fiocruz de 100 milhões de doses da vacina
AstraZeneca. E liberamos em agosto R$ 1,9 bilhão”
O
governo Bolsonaro realmente fechou acordo e liberou recurso para a compra e
produção do imunizante no país.
Especialistas
afirmam, no entanto, que o erro
foi ter apostado em uma única vacina, e recusado doses de outras fabricantes,
como a Pfizer, que já teriam entregue uma parcela dos imunizantes ao país.
Nesta terça (23), o Ministério da Saúde reduziu pela quinta vez a expectativa de
entrega de vacinas, depois que a Fiocruz, que produz o imunizante da
AstraZeneca no país, baixou a previsão de 30 para 18 milhões de doses.
“Em
setembro de 2020, assinamos outro acordo com o consórcio Covax Facility para a
produção de 42 milhões de doses. O primeiro lote chegou no domingo passado e já
foi distribuído para os estados”
"Logo
seremos autossuficientes na imunização"
A
afirmação não é realista. Apesar de haver fabricação de duas vacinas contra a
Covid no Brasil, a Coronavac,
pelo Instituto Butantan, e a Covishield, pela Fiocruz, têm ocorrido atrasos
constantes no cronograma de entrega de vacinas.
Nesta
terça, por exemplo, a Fiocruz
informou que entregará ao Ministério da Saúde de 11 a 12 milhões de doses a
menos do que estava previsto do imunizante em abril. Pela Fiocruz,
espera-se a entrega, até o meio do ano, cerca de 100
milhões de doses. Até agosto, o Butantan deve entregar o mesmo número de
doses.
Considerando
os brasileiros acima de 15 anos (169.277.800), porém, seriam necessárias mais
de 330 milhões de doses. A compra de outras vacinas, porém, como a da Pfizer,
devem garantir a vacinação de todo o país, até algum momento de 2022.
"Sempre
disse que compraríamos qualquer vacina desde que aprovada pela Anvisa"
A
afirmação é falsa. Bolsonaro, por diversas vezes, menosprezou
a vacina Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac e
produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, e chegou a falar que o país não
compraria a vacina. "Da
China nós não comparemos, é decisão minha. Eu não acredito que ela [vacina]
transmita segurança suficiente para a população pela sua origem", declarou
o presidente.
"Acredito
que teremos a vacina de outros países, até mesmo a nossa, que vai transmitir
confiança para a população. A da China, lamentavelmente, já existe um
descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem,
esse vírus teria nascido lá", disse.
Bolsonaro
também chegou a desautorizar
a compra das vacinas do Butantan, após acordo firmado pelo então ministro
da Saúde, Eduardo Pazuello.
"Intercedi pessoalmente
com a fabricante Pfizer para a compra de mais doses"
A
afirmação é verdadeira, mas há ressalvas. Bolsonaro
só se encontrou com o CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, recentemente,
no início de março, momento em que o país enfrentava colapsos e números
altíssimos de Covid pelo total descontrole da pandemia. Antes, o
governo ignorou e rejeitou propostas da farmacêutica para fornecimento
de milhões de doses, com possibilidade de aplicação já a partir de dezembro de
2020.
Até
fevereiro de 2021, estavam previstas 3 milhões de doses. Antes do encontro com
Bourla, Bolsonaro repetidas vezes falava sobre efeitos colaterais relacionados
à vacina, mais especificamente ao contrato com a farmacêutica, o qual a isenta
de responsabilização em caso de possíveis efeitos colaterais da vacina.
“Se
tomar e virar um jacaré é problema seu. Se virar um super-homem, se
nascer barba em mulher ou homem falar fino, ela [Pfizer] não tem nada com
isso”, afirmou Bolsonaro, em 17 de dezembro.
“Muito
em breve retomaremos nossa vida normal”
Pesquisadores
afirmam que a lenta velocidade na vacinação e a possibilidade do surgimento
de novas
variantes, mais transmissíveis e agressivas, devem fazer com que a imunidade
de rebanho não seja atingida ainda neste ano.
Por
isso, médicos e pesquisadores dizem que na volta à "vida normal”, mesmo
quando a vacinação tiver avançado, as pessoas deverão continuar seguindo regras
de distanciamento
social e uso de máscara, pois a proteção ideal estará longe de ser
atingida. Medidas que têm sido atacadas por Bolsonaro desde o início da
pandemia.
O
presidente, inclusive, continua tentando impedir governadores de adotar ações
para controlar a disseminação do vírus. Na última sexta (19), Bolsonaro moveu
ação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra o decreto dos governos do
Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul com restrições à circulação de
pessoas durante o momento mais crítico da pandemia. O ministro Marco Aurélio
Mello negou o pedido liminar.
“Solidarizo-me
com todos aqueles que tiveram perdas em suas famílias, que Deus conforte seus
corações”
A
frase dita no pronunciamento destoa do discurso que vem sendo adotado pelo
presidente nos últimos meses. Bolsonaro já usou as palavras
histeria e fantasia para classificar a reação à pandemia. No começo deste
mês, também afirmou que a população precisa enfrentar o problema.
“Nós
temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão
ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar,
obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai
parar o Brasil se nós pararmos?”, disse em viagem a São Simão (GO), em 4 de
março. Na quinta (18), Bolsonaro disse que “parece que só se morre de Covid” no
Brasil.
“Somos
incansáveis na luta contra o coronavírus. Essa é a missão e vamos cumpri-la”
Desde
o início da pandemia o presidente tem sido contrário e desestimulado as medidas
defendidas para o combate à disseminação do vírus. Bolsonaro incentivou
aglomerações, espalhou informações
falsas sobre a Covid-19, fez campanha de desobediência a medidas de
proteção, como uso de máscara , e defendeu e distribui
remédios sem eficácia comprovada contra a doença.
No último domingo (21), no pior momento da pandemia, o presidente comemorou seu aniversário com centenas de apoiadores aglomerados em frente ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro, inclusive, retirou a máscara para discursar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário