Filósofa
americana, que participa nesta quarta (24) de seminário virtual sobre
feminismo, fala sobre as perdas da pandemia agravadas pela desigualdade e o
novo livro que chegará ao Brasil, em julho, pela Boitempo
Renata
Izaal / O Globo
Na
última vez em que esteve no Brasil, em 2017, Judith Butler foi alvo de petições
on-line e ações judiciais de grupos conservadores que tentaram impedir sua
vinda ao país para um seminário sobre democracia. Ela veio, cumpriu sua agenda,
mas, na volta para casa, foi agredida no Aeroporto de Congonhas por quem
acredita que a filósofa americana é a fundadora da “ideologia de gênero”.
Mas
Butler não fundou coisa nenhuma. O que ela fez, de modo muito resumido, foi
teorizar sobre o gênero como algo socialmente construído, uma performance. Sua
obra, na verdade, é muito mais extensa e avança sobre política e democracia;
violência de Estado; luto; poder, discurso e sexualidade; sionismo e a questão
palestina.
Hoje,
às 14h, Butler voltará a se encontrar com o Brasil, mesmo que remotamente. Ela
vai discutir feminismo, corpo e território com a cantora, compositora e
ativista Preta Ferreira, dentro da programação do ciclo de debates on-line “Feminismo para
os 99%”, realizado pela Boitempo. O encontro será transmitido no canal no
YouTube da editora, que publicará, em julho, o livro mais recente de Butler. Em
“A força da não violência”, ela critica o individualismo na ética e na política
e defende a “igualdade radical” para que se possa construir algo bom juntos.
Em uma breve entrevista, Judith Butler, que leciona na Universidade da Califórnia, Berkeley, reflete sobre pandemia e luto, o negacionismo de Bolsonaro e de Trump e vibra com o feminismo latino-americano: “Movimentos como o Ni Una Menos e o Las Tesis me tocam e inspiram muito”, afirma.
Seu
novo livro defende uma igualdade radical, mas a pandemia tem aprofundado as
desigualdades em todo o mundo. Como analisa a crise atual e suas possíveis
consequências?
Acho
que estamos vendo com mais clareza do que nunca as desigualdades econômicas e
raciais que foram geradas pelo capitalismo global, além da situação terrível
imposta a mulheres, pessoas trans e não binárias, que foram confinadas nas
casas onde sofrem violência e degradação. É ainda mais doloroso ver os lucros
das farmacêuticas. Mas, mesmo assim, também vivemos num tempo em que a ação
contra as mudanças climáticas é imperativa, em que a luta pelas vidas negras
soa mais alto e é mais persuasiva, e em que as várias formas de feminismo
conquistam apoio. Não está claro em qual direção o mundo irá, mas a sensação de
que as lutas estão entrelaçadas me dá esperança.
O
luto é um tema importante em sua obra e tem sido debatido na pandemia, que
trancou as relações nos meios digitais e impediu tantas despedidas. Qual o
impacto disso?
Tem
sido devastador para tantas pessoas não poderem se aproximar dos que estão
morrendo, terem apenas o Zoom como um meio para o luto e, ao final, serem
deixadas com um isolamento que é insuportável e debilitante. Precisamos uns dos
outros para vivermos o luto. É importante estar perto fisicamente e regenerar o
sentido de uma vida conjunta a partir dessa perda devastadora e, agora, rápida.
A arte pública que marca as nossas perdas vai continuar sendo importante, assim
como as pequenas reuniões e, eventualmente, as grandes.
Manifestações,
como as do movimento Black Lives Matter, foram ao mesmo tempo atos públicos de
luto e protesto. Sabemos que tantas pessoas não precisavam ter morrido, que
elas sofreram da perda de cuidado adequado com a saúde e que as razões para
isso foram a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica. Então
teremos que refletir sobre a morte que poderia ser evitada: quem ou o que
deixou tantas pessoas morrerem?
O
governo dos Estados Unidos levou muito tempo para organizar sua resposta à
pandemia, já o brasileiro ainda não o fez adequadamente. Isso é uma forma de
violência?
Talvez
tenhamos que revisar o nosso entendimento de assassinato, ou que aceitar que há
muitas maneiras de lidar com a morte. Esta última está distribuída por toda a
sociedade, e os trabalhadores só têm valor quando são produtivos. É o momento
para uma renovação das ideias socialistas, começando com uma renda nacional
garantida. Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados. Com isto, quero
dizer: se, em algum momento, eles sentem vergonha, a superam por meio do
sadismo. São os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por
incontáveis mortes.
Trump
não se encerra com a eleição de Biden e Kamala.
É
ótimo que Trump tenha saído. Mas o que seu governo deixou claro é que a
supremacia branca, o masculinismo (ideologia que prega a superioridade dos
homens e a exclusão das mulheres), a transfobia, a homofobia e o antifeminismo
têm raízes profundas na cultura americana. Nossa luta será longa.
Depois
da agressão que sofreu no Brasil em 2017, você ainda acompanha o que se passa
no país?
Sim,
acompanho a situação política no Brasil e as operações do movimento contra a
ideologia de gênero. O incidente comigo foi pequeno se comparado com o que
aconteceu com feministas e pessoas LGBTQIA+ que perderam suas vidas para a violência,
o abuso sexual, o racismo e a transfobia. A questão é: por que é permitido que
essas violências aconteçam? Temos que perguntar sobre polícia e complacência do
Estado e sobre as notícias falsas e fomentadoras de ódio geradas on-line.
A
América Latina tem sido apontada como o epicentro do feminismo hoje. Você
concorda?
Movimentos como o Ni Una Menos (que, desde 2015, organiza manifestações contra a violência de gênero na Argentina) e o Las Tesis (coletivo chileno que criou performance contra a cultura do estupro reproduzida em diversos países) me tocam e inspiram muito. São corajosas, enfurecidas e alegres, e o feminismo precisa envolver todo esse arco afetivo para conseguir apoio e exemplificar a nova forma de vida que substituirá a violência, a exclusão e a desigualdade.
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