- O Estado de S. Paulo
‘Trânsito em julgado’ e polarização populista
nos mantêm presos num cenário perverso
O que se tem chamado de crise brasileira é
um cenário surrealista, dentro do qual dificilmente retomaremos o crescimento
econômico e a busca do bem-estar social. Compõe-se de muitos fatores, mas
tentarei descrevê-lo como a conjunção de dois becos sem saída, escuros e
entrelaçados.
O primeiro, como o jurista Modesto
Carvalhosa tem corajosamente ressaltado, é a própria Constituição de 1988.
Embora tenha consagrado várias coisas boas, não há dúvida de que ela impede o
combate ao crime de colarinho-branco, expressão a que recorro para designar as
falcatruas continuamente perpetradas pelos poderosos em geral, dentro e fora do
governo. Refiro-me, naturalmente, ao chamado “trânsito em julgado” (artigo 5.º,
LVII): “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”. Num país onde o patrimonialismo e o corporativismo não só
se mantêm, mas parecem crescer a cada 15 minutos, esse dispositivo é uma
aberração inominável. Por duas razões: primeiro, porque institui quatro instâncias
de julgamento; assim, a execução da pena só pode ter início após a confirmação
da condenação nas instâncias inferiores pelo Supremo Tribunal Federal.
Segue-se, evidentemente, que o citado dispositivo divide a Justiça brasileira
em duas, a dos ricos e a dos pobres.
Mas o beco é mais escuro do que parece. O “trânsito em julgado” é uma das cláusulas pétreas da Constituição, aquelas que só podem ser alteradas pelo chamado “poder constituinte originário”, vale dizer, na prática, por meio da convocação de uma nova Assembleia Constituinte. Quem, no momento atual, com a polarização grassando com sua característica estupidez, com a economia patinando e com a pandemia já atingindo quase 500 mil mortos – quem, dizia eu, terá a coragem, o arrojo e a lucidez para liderar tal empreitada?
Acrescente-se – e aqui a experiência da
Lava Jato foi altamente instrutiva – que essa é uma das principais pontes entre
a Constituição e os riscos políticos a que o Brasil está exposto. A Lava Jato
foi eficaz ao desvelar a extensão amazônica da corrupção e a infinidade de
tentáculos mediante os quais ela abraça o poder público. Mas foi incapaz –
justamente por causa do “trânsito em julgado” – de entregar a mercadoria que
sua própria existência implicava: o fim do conluio entre a ladroagem e o
Estado. Dessa incongruência brotou uma perversa contradição. Em vez de
robustecer o anseio de combate à corrupção, a abundância da informação estimula
o ressentimento contra quase tudo e quase todos. Quase todos – indivíduos e
instituições – se tornam farinha do mesmo saco. Dessa tendência à generalização
só escapam aqueles que, por um dom qualquer, percebem a chance de se
diferenciar. Jair Bolsonaro escapou em 2018. Fernando Henrique parece acreditar
em Lula contra ele em 2022. Pode até dar, mas e daí?
E assim chegamos ao segundo beco: a
polarização populista. De um lado, encarnado ainda pelo PT, o mesmo esquerdismo
aguado de sempre, incapaz de formular um projeto digno do nome para o País e
que hoje até se envergonha de se denominar socialismo. No polo oposto, um
indivíduo excluído das Forças Armadas por indisciplina, mas que conseguiu
passar uma imagem de “franqueza”, “autenticidade” e “coragem”. De “pulso firme”
na política e reforma liberal na economia. O que de fato aconteceu, e disso não
há como duvidar, foi um dos mais desavergonhados estelionatos eleitorais que
nossa História registra. A promessa de uma “nova política”, que parecia
significar o fim do patrimonialismo e do corporativismo, significando, na
verdade, o acesso ao poder dos mais lídimos representantes da “velha política”:
o mais que conhecido “Centrão”. Diferença, se cabe notar alguma, é que
Bolsonaro assume sem rebuços sua propensão violenta e uma clara inclinação
autogolpista. Como bem sabemos, todos os golpes se parecem. Primeiro, os
candidatos a golpista se empenham em aumentar o nível de tensão social e a
quantidade de gente armada na rua. Depois, tratam de intimidar ou cooptar as
Forças Armadas legítimas, subjugando-as ou, se a manobra sair pela culatra,
forçando-as a intervir sponte sua.
E desse beco como sairemos? Temos de
reconhecer: o Brasil é um prodígio político. Temos mais de 30 partidos e por
enquanto nada sugere que conseguiremos constituir uma força política de centro,
realista, capaz de enfrentar a monstruosa crise econômica e sanitária que se
abateu sobre nós e encarar de vez o imperativo das reformas de médio prazo.
A consequência previsível de nos mantermos
presos nesse cenário perverso pode ser facilmente condensada numa sentença:
perdermos uma geração inteira para atingirmos o nível de renda per capita dos
países relativamente pobres da Europa meridional. Esse devia ser o ponto
principal de nossa agenda, mas, por ora, temos questões mais substantivas a
tratar: o destino a ser dado ao general Pazzuelo e a organização da Copa
América. Como deixar para depois assuntos de tamanha importância?
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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