sábado, 5 de junho de 2021

Miguel Reale Júnior* - Voto sem cabresto

- O Estado de S. Paulo

Ameaça de Bolsonaro revela a intenção de deslegitimar o pleito em que pode ser derrotado

Por via da Emenda Constitucional 135/19 pretende-se impor o voto impresso, pois as leis que introduziam tal sistema foram consideradas inconstitucionais por violação do sigilo do voto, intocável alicerce da democracia, como consta do artigo 60, § 4.º, II, da Constituição.

Ledo engano da proponente da emenda, a deputada de extrema direita Bia Kicis, pois não é por ser emenda à Constituição, e não lei, que deixa de poder ser considerada inconstitucional se extrapola o limite material fixado nas cláusulas pétreas. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que emenda constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivado, incidindo em violação à constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo STF, cuja função precípua é de guarda da constituição (Adins 939-7 DF, 926-5 DF e 466 DF).

Atribui-se ao TSE má-fé ao defender sistema eletrônico destituído de segurança e rejeitar o voto impresso. Não é verdade. O TSE até colaborou, sendo Jobim presidente, na elaboração da Lei n.º 10.048/02, por isso denominada Lei Jobim, que introduziu o voto impresso, a ser adotado nas eleições de 2004.

Em 2002, o TSE, em vista de futura implantação do voto impresso, adotou, para teste, esse sistema em 150 municípios com 19.373 seções eleitorais, correspondendo a 7.128.233 eleitores, ou seja a 6,18% do eleitorado.

Os problemas surgidos foram imensos: 1) o tamanho das filas; 2) o número de votos nulos e em branco; 3) o porcentual de urnas com votação por cédula; 4) a quantidade de urnas que apresentaram defeito, além das falhas na impressora. O TSE e os TREs, com vantagens inquestionáveis sobre o voto impresso, propuseram o registro eletrônico do voto (cédula eletrônica), que espelha a composição do voto do eleitor, sem identificá-lo.

Assim, editou-se a Lei n.º 10.740/03, que revogou a exigência do voto impresso e implantou o registro digital do voto, resguardado o anonimato do eleitor. Criou-se também comissão para acompanhamento de todo o procedimento de testagem e verificação das urnas, com técnicos indicados pelos partidos, pela OAB e pelo Ministério Público.

Mas em 2009 voltou-se a legislar para adoção do voto impresso, por via da Lei n.º 12.034, julgada inconstitucional pela ministra Cármen Lúcia na Adin n.º 4.543, em abril de 2013. Nessa decisão, pontuava a ministra: o segredo do voto foi conquista impossível de retroação e a impressão do voto fere exatamente o direito inexpugnável ao segredo. A impressão do voto é prova do seu ato. Se o ato é próprio e inexpugnável, qual a sua necessidade? Se não há que prestar contas (porque é ato personalíssimo), para que o papel?

No voto, a ministra Cármen Lúcia recorreu ao princípio da proibição do retrocesso político, que impede suprimir o direito ao voto com garantia de segredo e invulnerabilidade para retroceder a modelo superado.

Foi própria da República Velha a cédula a descoberto, para controle dos coronéis sobre o eleitor, obediente servidor a prestar contas mediante o voto de cabresto, passível de se reinstalar com o voto impresso.

Diante de nova declaração de inconstitucionalidade da lei de 2009, houve mais outra tentativa de introdução do voto impresso pela Lei n.º 13.165/2015, cuja eficácia foi cassada na Adin 5.889, por liminar de junho de 2018.

A liminar foi confirmada em julgamento de 2020. Segundo a decisão, a impressão do voto pode gerar falhas inocorrentes no voto exclusivamente eletrônico e ameaça a livre opção do eleitor em face de potencial identificação de quem escolheu quais candidatos.

Nesse julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, além de ressaltar jamais ter havido prova alguma de fraude no sistema eletrônico, destacou a existência de mecanismos que garantem a confiabilidade das urnas eletrônicas: 1) a transparência no desenvolvimento dos programas; 2) a realização de testes regulares; 3) o procedimento de votação paralela; e 4) a entrega de cópia dos dados processados aos partidos políticos. E alerta para a judicialização da eleição, com candidatos a solicitar recontagem pelos votos impressos, com risco de violação do sigilo.

Para verificação dessa confiabilidade se realizou Confirmação do Teste Público de Segurança (TPS) 2019 do Sistema Eletrônico, constatando-se a segurança e a plena confiabilidade da urna eletrônica.

Se, com bem diz a deputada Margarete Coelho, urnas eletrônicas garantem segurança e sigilo e o voto impresso apenas segurança (blog de Fausto Macedo, 25/5), é forçoso concluir ser impossível adotar o meio-termo do voto impresso em algumas urnas, pois é inconstitucional o risco ao sigilo do voto em qualquer porcentual.

Mas por que a insistência no voto impresso? A ameaça de Bolsonaro de não haver eleições sem tal sistema revela a intenção de deslegitimar o pleito futuro em que pode ser derrotado.

Assim, a campanha do TSE de informar a garantia do voto secreto e a lisura das eleições por meio do sistema eletrônico deve merecer integral apoio em defesa da democracia.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia paulista de letras, foi ministro da Justiça

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