- O Estado de S. Paulo
Ameaça de Bolsonaro revela a intenção de
deslegitimar o pleito em que pode ser derrotado
Por via da Emenda Constitucional 135/19
pretende-se impor o voto impresso, pois as leis que introduziam tal sistema
foram consideradas inconstitucionais por violação do sigilo do voto, intocável
alicerce da democracia, como consta do artigo 60, § 4.º, II, da Constituição.
Ledo engano da proponente da emenda, a
deputada de extrema direita Bia Kicis, pois não é por ser emenda à
Constituição, e não lei, que deixa de poder ser considerada inconstitucional se
extrapola o limite material fixado nas cláusulas pétreas. Já decidiu o Supremo
Tribunal Federal que emenda constitucional, emanada, portanto, de
constituinte derivado, incidindo em violação à constituição originária, pode
ser declarada inconstitucional, pelo STF, cuja função precípua é de guarda da
constituição (Adins 939-7 DF, 926-5 DF e 466 DF).
Atribui-se ao TSE má-fé ao defender sistema
eletrônico destituído de segurança e rejeitar o voto impresso. Não é verdade. O
TSE até colaborou, sendo Jobim presidente, na elaboração da Lei n.º 10.048/02,
por isso denominada Lei Jobim, que introduziu o voto impresso, a ser adotado
nas eleições de 2004.
Em 2002, o TSE, em vista de futura
implantação do voto impresso, adotou, para teste, esse sistema em 150
municípios com 19.373 seções eleitorais, correspondendo a 7.128.233 eleitores,
ou seja a 6,18% do eleitorado.
Os problemas surgidos foram imensos: 1) o tamanho das filas; 2) o número de votos nulos e em branco; 3) o porcentual de urnas com votação por cédula; 4) a quantidade de urnas que apresentaram defeito, além das falhas na impressora. O TSE e os TREs, com vantagens inquestionáveis sobre o voto impresso, propuseram o registro eletrônico do voto (cédula eletrônica), que espelha a composição do voto do eleitor, sem identificá-lo.
Assim, editou-se a Lei n.º 10.740/03, que
revogou a exigência do voto impresso e implantou o registro digital do voto,
resguardado o anonimato do eleitor. Criou-se também comissão para
acompanhamento de todo o procedimento de testagem e verificação das urnas, com
técnicos indicados pelos partidos, pela OAB e pelo Ministério Público.
Mas em 2009 voltou-se a legislar para
adoção do voto impresso, por via da Lei n.º 12.034, julgada inconstitucional
pela ministra Cármen Lúcia na Adin n.º 4.543, em abril de 2013. Nessa decisão,
pontuava a ministra: o segredo do voto foi conquista impossível de retroação e
a impressão do voto fere exatamente o direito inexpugnável ao segredo. A
impressão do voto é prova do seu ato. Se o ato é próprio e inexpugnável, qual a
sua necessidade? Se não há que prestar contas (porque é ato personalíssimo),
para que o papel?
No voto, a ministra Cármen Lúcia recorreu
ao princípio da proibição do retrocesso político, que impede suprimir o direito
ao voto com garantia de segredo e invulnerabilidade para retroceder a modelo superado.
Foi própria da República Velha a cédula a
descoberto, para controle dos coronéis sobre o eleitor, obediente servidor a
prestar contas mediante o voto de cabresto, passível de se reinstalar com o
voto impresso.
Diante de nova declaração de inconstitucionalidade
da lei de 2009, houve mais outra tentativa de introdução do voto impresso pela
Lei n.º 13.165/2015, cuja eficácia foi cassada na Adin 5.889, por liminar de
junho de 2018.
A liminar foi confirmada em julgamento de
2020. Segundo a decisão, a impressão do voto pode gerar falhas inocorrentes no
voto exclusivamente eletrônico e ameaça a livre opção do eleitor em face de
potencial identificação de quem escolheu quais candidatos.
Nesse julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, além de ressaltar jamais ter havido prova alguma de fraude no sistema eletrônico, destacou a existência de mecanismos que garantem a confiabilidade das urnas eletrônicas: 1) a transparência no desenvolvimento dos programas; 2) a realização de testes regulares; 3) o procedimento de votação paralela; e 4) a entrega de cópia dos dados processados aos partidos políticos. E alerta para a judicialização da eleição, com candidatos a solicitar recontagem pelos votos impressos, com risco de violação do sigilo.
Para verificação dessa confiabilidade se
realizou Confirmação do Teste Público de Segurança (TPS) 2019 do Sistema
Eletrônico, constatando-se a segurança e a plena confiabilidade da urna
eletrônica.
Se, com bem diz a deputada Margarete
Coelho, urnas eletrônicas garantem segurança e sigilo e o voto impresso apenas
segurança (blog de Fausto Macedo, 25/5), é forçoso concluir ser impossível
adotar o meio-termo do voto impresso em algumas urnas, pois é inconstitucional
o risco ao sigilo do voto em qualquer porcentual.
Mas por que a insistência no voto impresso?
A ameaça de Bolsonaro de não haver eleições sem tal sistema revela a intenção
de deslegitimar o pleito futuro em que pode ser derrotado.
Assim, a campanha do TSE de informar a
garantia do voto secreto e a lisura das eleições por meio do sistema eletrônico
deve merecer integral apoio em defesa da democracia.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia paulista de letras, foi ministro da Justiça
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