EDITORIAIS
Sociedade espera acenos do Exército na
direção certa
O Globo
É inegável que a participação do general Eduardo Pazuello, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, numa manifestação de motocicletas seguida de comício no Rio de Janeiro, desrespeitou o Regulamento Disciplinar do Exército e o Estatuto das Forças Armadas. O primeiro veda a militares da ativa manifestar-se publicamente “a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. O segundo proíbe manifestações de “caráter reivindicatório ou político”.
Ainda assim, o general Paulo Sérgio
Nogueira, comandante do Exército, decidiu não punir Pazuello e mandou arquivar
o procedimento administrativo instaurado para apurar o caso. “Não restou
comprovada transgressão disciplinar”, afirma o comunicado oficial.
Aparentemente, depois de consulta entre os 15 generais do Alto-Comando do
Exército, Nogueira acatou a alegação da defesa de Pazuello, segundo a qual não
se tratava de manifestação política nem partidária, já que Bolsonaro está sem
partido.
Não há como aceitar tal argumento, pois era
óbvio o caráter político do evento, parte da campanha antecipada de Bolsonaro à
reeleição. No alto do palanque, ambos agradeceram entusiasmados o apoio da
multidão.
Do ponto de vista da manutenção da
disciplina militar, o Exército cometeu um erro. Deveria ter punido Pazuello,
nem que apenas com uma advertência formal. É o mínimo que as Forças Armadas
costumam fazer em episódios dessa natureza. Basta lembrar o exemplo do então
general da ativa e hoje vice-presidente Hamilton Mourão, removido de um cargo
de comando depois do discurso em que criticou a então presidente Dilma Rousseff
em 2015.
A decisão do comandante do Exército despertou uma preocupação legítima com o tipo de recado que transmite às tropas. Bolsonaro não poupa esforços para tentar sujeitar as instituições da República a seus desígnios. Já desafiou inúmeras vezes o Supremo Tribunal Federal, falou em “meu Exército” e insinuou que usaria a força dos militares para fazer valer as liberdades que julga ameaçadas pelas restrições impostas por governos locais em virtude da pandemia. Não para, também, de emitir sinais de que pretende ficar no poder, ainda que as urnas lhe sejam desfavoráveis em 2022, acenando desde já com denúncias de fraudes que, todos sabemos, são fantasiosas.
Há duas versões majoritárias para explicar
a decisão do Exército. A primeira aponta para uma sujeição incondicional do
Exército aos propósitos inconfessáveis de Bolsonaro. Essa versão não respeita a
posição legalista que os militares vêm adotando de forma inequívoca desde a
Constituição de 1988. Por mais confuso que seja o quadro político atual, essa
teoria parece carecer de indícios mais concretos.
A segunda versão dá conta de que o Exército
teria tentado impedir uma nova crise com o chefe de governo. O atual
comandante, Paulo Sérgio Nogueira, chegou ao comando do Exército há dois meses,
depois da crise que culminou na queda do então ministro da Defesa, Fernando
Azevedo e Silva, e dos três comandantes das Forças Armadas. Foi escolhido em
respeito às normas de antiguidade no Exército e à revelia de Bolsonaro. Dias
antes, defendera em entrevista uma política oposta à preconizada pelo
presidente no combate ao coronavírus. Punir Pazuello, posição majoritária no
Alto-Comando, significaria voltar a enfrentar Bolsonaro de modo explícito e
abrir uma nova crise entre ele e o Exército. Nogueira teria preferido a
cautela.
Melhor que essa tenha sido a verdade.
Assim, a decisão não implica necessariamente que as Forças Armadas tenham se
sujeitado ao projeto político bolsonarista. Até porque, num universo de 200 mil
militares, há espaço para toda sorte de opinião e posição política.
Seja como for, diante da confusão e das
especulações abertas pela absolvição de Pazuello, a sociedade espera agora os
acenos na direção certa tanto dos comandantes das Forças Armadas quanto das
polícias militares, outro foco de um sem-número de tentativas de mobilização
promovidas pelo bolsonarismo.
Para transmitir os recados certos aos
quartéis, quaisquer tipos de manifestação em apoio a ideologias ou projetos
políticos não podem mais ser tolerados. Atos de insubordinação, menos ainda. Às
vésperas de um ano eleitoral, não é aceitável que novos Pazuellos passem
incólumes apenas porque se associam de modo incondicional àquele que
ocasionalmente ocupa o poder.
Além disso, há cerca de 6 mil militares em
cargos de confiança no governo. A possibilidade de envolvimento político de
cada um deles é motivo para o Congresso dar mais celeridade ao exame da
Proposta de Emenda Constitucional da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), que
proíbe militares da ativa de ocupar cargos no governo. A presença de Pazuello
no comício ao lado de Bolsonaro teria causado menos problema se ele estivesse
na reserva. O próprio Exército não deveria poupar esforços para que ele fosse
reformado o quanto antes.
As regras que vedam atos políticos aos militares da ativa existem porque preservam a essência da atividade deles: zelar pela ordem, pela democracia, pelas liberdades e pelos princípios constitucionais. Um país que sofreu durante anos as dores de uma ditadura militar conhece muito bem o custo do envolvimento das Forças Armadas na política. Não faz bem para elas. Não faz bem para o Brasil.
Força enfraquecida
Folha de S. Paulo
Exército coloca a disciplina em xeque ao
ceder a Bolsonaro e livrar Pazuello
Ao livrar o
general Eduardo Pazuello de punição após um grave episódio de
indisciplina, o comando do Exército abalou um dos pilares erigidos para
sustentar as Forças Armadas na ordem republicana.
Os regulamentos da corporação proíbem
militares da ativa como Pazuello de participarem de eventos políticos, o que
ele fez quando se juntou a Jair Bolsonaro no palanque de um ato convocado por
militantes há duas semanas.
O comandante do Exército, general Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, anunciou na quinta (3) o arquivamento do processo
disciplinar aberto para examinar a conduta do oficial insubordinado, aceitando
suas explicações.
Pazuello justificou-se com a desculpa
esfarrapada de que a manifestação bolsonarista não tinha caráter partidário,
dada a circunstância de que o presidente não está filiado a nenhuma sigla no
momento.
Bolsonaro não só endossou a desfaçatez como
nomeou seu desastroso ex-ministro da Saúde para um cargo na cozinha do Palácio
do Planalto, ampliando a pressão para que o comandante do Exército o poupasse
de constrangimentos.
Além de submeter-se à vontade do presidente
da República, o general Paulo Sérgio desprezou a opinião de outros integrantes
da cúpula do Exército que defendiam a aplicação da pena mínima de advertência
para Pazuello.
Ainda que se aceite a versão de que o
comandante optou pela acomodação para evitar uma nova crise militar, dois meses
após as mudanças abruptas promovidas por Bolsonaro na área, é impossível
ignorar o perigoso precedente criado por sua decisão.
Se um general pode discursar ao lado de um
presidente em campanha pela reeleição, será muito mais difícil fazer valer os
códigos da corporação na hipótese de novos desafios à hierarquia.
Trata-se de risco particularmente
inquietante na conjuntura atual, em que se veem com frequência abusos e casos
de indisciplina nas polícias militares, cujos membros estão sujeitos às mesmas
restrições impostas às Forças Armadas.
Quando o comandante do Exército aceita
correr esse risco para não contrariar o mandatário, coloca em xeque a
credibilidade da entidade que representa.
Defenestrado do Exército ele mesmo após um
episódio de indisciplina no passado, Bolsonaro não cansa de usar a aliança
forjada com as Forças Armadas em sua ascensão ao poder para intimidar
opositores. Com o perdão a Pazuello, recebe incentivo para continuar com suas
bravatas e, pior, atentar contra as instituições.
Marco inovador
Folha de S. Paulo
Lei de startups introduz regulação
favorável e acerta ao evitar benefício fiscal
É positiva a entrada em
vigor do Marco Legal das Startups.
A nova lei busca criar um ambiente regulatório mais favorável para empresas com
até R$ 16 milhões de receita anual e que sejam atuantes na inovação aplicada a
produtos, serviços ou modelos de negócios.
Há inúmeros avanços importantes. Um dos
principais é o que dá maior segurança jurídica para investidores, que não
responderão por dívidas das empresas nas quais aportaram recursos.
A norma reforça que aportes por meio de
opções para subscrição ou compra de ações, debêntures e mútuos com cláusula de
conversão em participação, entre outras modalidades, não implicam participação
no capital social.
Também foi criada a figura do ambiente
regulatório experimental, pela qual os órgãos públicos poderão simplificar
regras temporariamente e sob certas condições. É mudança relevante, com
potencial para estimular a inovação e evitar exigências que travam o surgimento
de novos processos e soluções.
A lei reconhece o papel das compras
públicas para fomentar a inovação e simplifica procedimentos licitatórios. Em
vez da especificação dos parâmetros técnicos para a aquisição de um produto ou
serviço, bastará o detalhamento do desafio tecnológico que se quer resolver e
os resultados esperados. A proposta de solução ficará a cargo das empresas
concorrentes.
A partir do resultado da licitação, a
administração pública poderá assinar um contrato com vigência de 12 meses,
limitado a R$ 1,6 milhão, com definição de metas, matriz de riscos, propriedade
intelectual e participação nos resultados da exploração.
Tais procedimentos deveriam nortear o
processo de compras públicas em todas as áreas em que for relevante maior
experimentalismo, mesmo que o potencial fornecedor não seja uma startup.
Por fim, apesar das queixas de entidades do
setor, foi acertada a recusa em prover benefícios fiscais. Uma inovação
verdadeira no Brasil seria não pedir tais incentivos —e os que dizem
representar empreendedores deveriam saber disso.
O pleito de acesso ao Simples para
sociedades anônimas também era duvidoso. Uma empresa que opta por essa
modalidade busca facilitar a captação de recursos de investidores
profissionais. Ser pequeno não significa necessariamente não ser sofisticado.
Talvez a maior lacuna seja uma boa
regulamentação para a concessão de opções de ações para funcionários, a forma
mais comum para atração e retenção de talentos. Será preciso voltar a esse
tema.
É preciso reagir antes que seja tarde
O Estado de S. Paulo
A lamentável decisão do Comando do Exército de não punir o general intendente Eduardo Pazuello, que desafiou a hierarquia e a disciplina ao participar de ato político do presidente Jair Bolsonaro, não tem nenhuma relação com os valores e regramentos militares. Foi exclusivamente política.
O intendente Pazuello deveria ter sido
punido de modo exemplar pelo Exército no mesmo dia em que subiu em um palanque
ao lado de Bolsonaro durante comício no Rio de Janeiro, contrariando as normas
das Forças Armadas e a Constituição. Não havia razão, a não ser política, para
a hesitação do Comando do Exército na deliberação sobre o caso, pois as imagens
eram claras.
Conforme a nota do Exército acerca da
decisão, contudo, o Comando aceitou a cínica justificativa apresentada pelo
intendente, obviamente combinada com Bolsonaro, de que o ato não era
político-partidário porque não é época de eleição e porque o presidente não tem
nem partido. Uma desfaçatez que desonra Caxias e insulta a inteligência dos
brasileiros.
Na verdade, a “defesa” de Pazuello cumpriu
apenas uma formalidade. Bolsonaro havia deixado claro que receberia como uma
afronta à sua autoridade de comandante supremo das Forças Armadas qualquer
punição a seu fidelíssimo “gordinho”, como o presidente jocosamente a ele se
referiu no tal ato. A nomeação de Pazuello para um cargo no Palácio do Planalto
reforçou os laços do intendente com o presidente, que assim mandou seu recado
de valentão: mexeu com ele, mexeu comigo.
Ao escolher o apaziguamento com aqueles que
insultam a história e os valores militares, o Exército facilitou o
florescimento da insubordinação nos quartéis. Como comentou, alarmado, o
ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, o Exército “capitulou”. E Jungmann
acrescentou: “É hora de reagir e de unidade, antes que seja tarde”.
Ao se calar, o Exército se torna um partido
para Bolsonaro, e ninguém garante que os militares doravante não se dividirão
em facções incontroláveis. Se o Exército não se manifestar pela manutenção da
ordem constitucional e, afinal, pela manutenção da paz civil, como espera a
maioria da Nação e dos cidadãos responsáveis, as Forças Armadas deixarão de ser
o Grande Mudo.
Bolsonaro criou uma crise praticamente
insolúvel, qualquer que seja o resultado. Rompe-se o preceito lembrado pelo
marechal Castello Branco às vésperas da eclosão do movimento de 31 de março de
1964: se a alguns oficiais é dado apoiar o presidente da República na pugna
política, a outra facção terá o mesmo direito de criticar e repudiar o mesmo
presidente.
Isso significa a quebra da ordem civil, o
fim das instituições tal como as conhecemos desde 1988 (a rigor, desde 1985) e
a ruptura do sentimento de irmandade dentro do País.
É isso o que o presidente Jair Bolsonaro
vem tentando fazer desde muito antes de se eleger presidente da República:
dissipar a autoridade da Constituição de 1988 e dividir até obter a
irrelevância dos Poderes do Estado – inclusive da Presidência, totalmente
entregue por sua vontade, que acredita soberana, a seus filhos e familiares, ao
gabinete do ódio e ao grupo rastaquera que no terceiro e no quarto andares do
Palácio do Planalto lhe faz todas as vontades.
Essa destruição sistemática do Estado e do
governo precisa acabar. Os militares da ativa e da reserva que o sr. Bolsonaro
convocou para cumprir a sinistra tarefa de respaldá-lo em sua aventura golpista
precisam demonstrar que de fato, como sempre afirmam, são patriotas – e,
portanto, precisam demitir-se. Além disso, os políticos que se venderam a
Bolsonaro por 30 moedas logo verão que a anarquia e a desordem esvaziam de
valor os seus dinheiros.
A hora é esta. Cada qual escolha seu papel
na história pátria. É o momento de apoiar as instituições, lastreadas nos
valores indisputáveis da democracia, da República e da liberdade. Que os bons
brasileiros façam o silêncio cair sobre os anarquistas golpistas que querem
destruir a Nação e instalar aqui uma ditadura baseada na desordem e estruturada
na milícia.
Mais um inquérito contra Salles
O Estado de S. Paulo
A permanência no cargo do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, há tempos já era insustentável em virtude de sua gestão, que pode se prestar a tudo, menos à preservação ambiental. O tal “ambientalismo de resultados” encampado pelo ministro nada mais é do que uma expressão empolada para designar o enfraquecimento dos mecanismos de combate aos crimes ambientais e contribuir de maneira decisiva para transformar o Brasil em pária internacional, quando a posição do País, há muitos anos, era a de interlocutor respeitável nos fóruns globais sobre desenvolvimento ambientalmente sustentável.
Não fosse o bastante para a substituição do
ministro o fato de ele não garantir o direito dos brasileiros a um “meio
ambiente ecologicamente equilibrado”, como determina a Constituição, apareceram
gravíssimas suspeitas de que Salles não só enfraqueceu o combate ao
desmatamento ilegal, como ele mesmo estaria envolvido na prática de crimes.
Desde então sua permanência no Ministério do Meio Ambiente é uma temeridade.
Corre uma investigação da Polícia Federal
(PF), autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal
(STF), para apurar se Salles e o ex-presidente do Ibama Eduardo Bim alteraram
normas do órgão de defesa ambiental para facilitar a exportação de madeira
extraída ilegalmente para os Estados Unidos, atendendo a interesses econômicos
de madeireiros com os quais o ministro teria tido contato dias antes da
modificação normativa (ver editorial Caso de polícia, publicado em 21/5/2021).
Na quarta-feira passada, Salles teve um
novo revés na Corte Suprema. A ministra Cármen Lúcia atendeu a um pedido da
Procuradoria-Geral da República (PGR) e autorizou a instauração de novo
inquérito para apurar se o ministro do Meio Ambiente obstruiu uma investigação
da Polícia Federal que culminou na maior apreensão de madeira ilegal da
história do País. O pedido da PGR tem como base a notícia-crime apresentada ao
STF contra Salles pelo delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente da PF no
Amazonas. Saraiva, convém lembrar, foi exonerado do cargo após acusar Salles de
patrocinar os interesses privados de madeireiros responsáveis pela extração
ilegal.
Aos olhos da ministra Cármen Lúcia, a
“gravidade incontestável das acusações” que pesam contra Ricardo Salles e os
“indícios suficientes” de práticas como advocacia administrativa, obstrução de
fiscalizações ambientais e embaraço de investigação de infrações penais
envolvendo organização criminosa autorizam a instauração de mais um inquérito
contra o ministro.
O vice-procurador-geral da República,
Humberto Jacques de Medeiros, que assina o pedido de instauração de inquérito,
afirmou que a notícia-crime apresentada pelo delegado Alexandre Saraiva
“demanda uma investigação aprofundada”, pois o ministro Salles e servidores a
ele subordinados teriam agido deliberadamente “em descompasso com as
recomendações técnicas”, além de terem dirigido “cobranças” à PF sobre a apreensão
recorde de madeira extraída ilegalmente.
O ministro Ricardo Salles afirmou que a
investigação “será uma boa oportunidade para esclarecer todos os fatos”. É
precisamente o que se espera, dada a extrema gravidade das acusações que pairam
sobre ele.
Em qualquer governo minimamente sério, o
normal seria o afastamento do ministro de seu cargo para que pudesse cuidar
plenamente de sua defesa. Não são triviais as acusações das quais deve se
defender. Mas, se normal fosse este governo, o presidente certamente haveria de
ser outro. Jair Bolsonaro, aos olhos de quem Ricardo Salles é um “excepcional
ministro”, não exige respeito às leis, competência técnica ou comportamento
ilibado de seus subordinados. O que ele exige é fidelidade absoluta e total
alinhamento à sua agenda de conflitos. E isto, não se pode negar, o ministro do
Meio Ambiente tem entregado com eficiência exemplar. Salles só será substituído
caso se torne fardo político demasiado pesado para Bolsonaro carregar.
Itinerário para a energia limpa
O Estado de S. Paulo
A neutralidade das emissões de carbono até 2050 é considerada crucial para atingir o objetivo do Acordo do Clima de Paris de manter a temperatura global até 2°C (idealmente até 1,5°C) acima dos níveis pré-industriais. O número de países comprometidos com essa meta cresce a cada ano. Mas as emissões de gases de efeito estufa também. Reduzir a lacuna entre retórica e ação exigirá esforços massivos e ampla coordenação entre os governos, o setor energético e os consumidores. A meta é difícil, mas, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), é factível.
Demonstrar essa factibilidade foi o
principal objetivo do estudo Rede Zero 2050 - Um Itinerário para o Setor Global de Energia. É
o primeiro roteiro abrangente detalhando ações para impulsionar rapidamente a
energia limpa e reduzir os combustíveis fósseis, criando, ao mesmo tempo,
milhões de empregos e garantindo o desenvolvimento econômico inclusivo. O
estudo estabelece mais de 400 marcos indicando o que e quando precisa acontecer
para realizar a transição para a energia limpa.
No modelo proposto, os grupos de energia
precisariam interromper novos projetos de exploração de petróleo, gás e carvão
– embora seja necessário continuar os investimentos nas fontes existentes. “O
caminho é estreito, mas é factível”, disse o diretor da AIE, Fatih Birol.
“Precisamos de um salto histórico em investimento. O seu cerne deve ser a
energia limpa.”
A AIE afirma que as tecnologias necessárias
para realizar cortes substantivos nas emissões na próxima década já existem, e
as políticas para orientar o seu desenvolvimento já foram testadas. “Metas e
licitações competitivas podem possibilitar que as fontes eólicas e solares
acelerem a transição do setor elétrico. A redução dos subsídios aos
combustíveis fósseis, a precificação do carbono e outras reformas de mercado
podem assegurar cifras de preço apropriadas. As políticas deveriam limitar ou
desincentivar o uso de certos combustíveis e tecnologias, tais como geradoras
por carvão, caldeiras a gás ou os motores convencionais de combustão dos
veículos.”
Segundo a AIE, as maiores oportunidades de
inovação estão nos setores de baterias avançadas, eletrólise de hidrogênio e
captura e armazenamento de carbono. A pesquisa e desenvolvimento nesses campos
precisará ser acompanhada de infraestruturas de grande escala, incluindo novos
gasodutos para transportar o carbono capturado e sistemas para mover o
hidrogênio.
Os custos são expressivos. O investimento
anual em energia, atualmente na casa de US$ 2,3 trilhões, precisaria saltar
para US$ 5 trilhões em 2030. Mas o modelo projeta com isso um acréscimo de 0,4%
por ano ao crescimento do PIB global. A estimativa calcula que a perda de 5
milhões de empregos no setor fóssil seria compensada por 14 milhões de empregos
criados até 2030 em atividades como energia limpa, engenharia e indústria.
“Tudo isso põe o PIB global, em 2030, 4% acima do que atingiria baseado nas
tendências atuais.”
Parece quase bom demais para ser verdade. Talvez
seja. Basta lembrar que, em todo o mundo, 785 milhões de pessoas ainda não têm
acesso à eletricidade e 2,6 bilhões não têm acesso a soluções limpas para
cozinhar. Para garantir que a transição será inclusiva, as nações desenvolvidas
precisarão fornecer recursos e tecnologias àquelas em desenvolvimento. Estarão
elas dispostas a arcar com esses custos? É possível garantir que elas não
elevarão o preço da energia a níveis impraticáveis para os mais pobres,
aumentando assim as desigualdades entre as nações ricas e pobres e entre as
classes ricas e pobres dentro delas? São perguntas que deverão estar no centro
das discussões de fóruns como a COP 26 da Convenção do Clima da ONU em
novembro.
A proposta da AIE é ambiciosa, mas insuspeita. Historicamente, a Agência criada em 1974 para garantir o fluxo do fornecimento de petróleo foi severamente criticada por ser excessivamente pró-fósseis e subestimar a capacidade das fontes renováveis. O estudo muda essa posição significativamente.
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