Autor do livro ‘Forças Armadas e Política no Brasil’, ele diz que a transformação do Exército em instrumento da política de Bolsonaro afetará as eleições de 2022
Sérgio Roxo / O Globo
SÃO PAULO — Historiador que estuda a
participação dos militares na política brasileira, José Murilo de Carvalho
avalia que a decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello por
participar de ato político com o presidente Jair Bolsonaro representa uma
capitulação desmoralizante para o comando da instituição e pode ter “sérias
consequências para o funcionamento da democracia brasileira”. Autor, entre
outros, do livro “Forças Armadas e Política no Brasil”, Carvalho acredita que o
episódio pode levar “à politização da Força”.
A ausência de punição ao
general Eduardo Pazuello pode levar a uma anarquia nas Forças Armadas?
Trata-se do episódio mais grave no que se
refere à relação entre o Exército e o atual presidente. A justificativa de que
o general envolvido não participara de ato político é ridícula e ele próprio o
reconhecera logo depois do evento, quando pediu desculpas. Até mesmo o general
Mourão, vice-presidente, duas vezes punido por fazer declarações políticas,
defendeu a necessidade da punição para preservar a disciplina. O comandante da
Força e o Alto Comando que o assessora tornaram-se responsáveis pela quebra de
um dos esteios da corporação (o outro é a hierarquia). Tornou-se clara a
consequência política negativa da alta presença de militares no governo.
O senhor acredita que exista
hoje uma divisão dentro do Exército sobre a postura que deve ser adotada em
relação ao presidente Jair Bolsonaro?
Se não havia, haverá agora. Será inevitável
que a não punição de Pazuello gere um grande debate dentro do Exército e também
da Marinha e da Aeronáutica. O argumento frequentemente usado pelas Forças
Armadas de serem instituições de Estado e não de governo perde credibilidade.
Em março, os comandantes das Forças
deixaram seus postos por aparentemente não se submeterem ao presidente. Agora,
houve uma capitulação?
Houve uma capitulação desairosa e desmoralizante para o comandante e perigosa por poder levar à politização da Força, com sérias consequências para o funcionamento da democracia.
Como essa decisão pode ser
avaliada dentro de todo o contexto de envolvimento político das Forças Armadas
nos últimos anos, que inclui o tuíte do então comandante do Exército, Eduardo
Villas Boas, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo STF?
O tuíte do general Villas Boas desmentiu a
aparente renúncia pelas Forças Armadas, pelo Exército em particular, de outro
papel, exercido na prática, o de tutoras da República. Uma eventual divisão
interna do Exército dificultará o exercício desse papel, mas, ao mesmo tempo,
poderá aumentar o grau de instabilidade política, chegando, no limite, à volta
aos turbulentos anos de 1950/1960. Será mais um desafio a ser enfrentado por
nossa frágil democracia.
Qual o impacto político que
pode resultar dessa decisão de não punir o general?
A transformação do Exército em instrumento
da política do presidente vai afetar as eleições de 2022. A libertação de Lula
e a possibilidade de que ele se candidate e, mais ainda, vença as eleições,
trazem de volta o fantasma de sua eleição que o general Villas Boas tentou com
êxito exorcizar em 2018. A dificuldade que têm os partidos de centro em montar
uma terceira via eleitoral vai contribuir para esse cenário polarizado. As
Forças Armadas terão que decidir se vão adotar a linha de Villas Boas,
configurando nova intervenção política ou se vão reafirmar o papel que se
atribuem de instituição do Estado.
Numa dimensão histórica, qual
o significado dessa decisão do Exército?
Que me lembre, o único caso que tem alguma semelhança com o atual foi o de 11 de novembro de 1955. JK (Juscelino Kubitschek) ganhara as eleições, mas golpistas militares queriam evitar sua posse. O coronel Bizarria Mamede fez um discurso golpista. O ministro da Guerra, general Lott, quis puni-lo, mas o presidente em exercício, Carlos Luz, não concordou. Lott pediu demissão, mas um grupo de generais, liderados por Odílio Denys, o convenceram a reagir. Carlos Luz e Café Filho foram depostos e Nereu Ramos, presidente do Senado, assumiu a presidência. Em janeiro de 1956, JK tomou posse. Foi uma espécie de golpe preventivo, a favor da lei, causado pela não punição de um oficial golpista.
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