- Folha de S. Paulo
Líderes populistas fingem jogar dentro das
quatro linhas da Constituição
Se a geração de meus professores se
concentrou em responder quando termina o regime autoritário e se consolida a
democracia, o desafio neste momento é, lamentavelmente, tentar compreender a
partir de que ponto o regime
democrático se converte em autoritário.
Essa pergunta se torna particularmente mais
difícil quando as ameaças às instituições, aos direitos e aos valores
republicanos ou liberais partem de líderes eleitos, que se apresentam como
representantes exclusivos da soberania popular, como na mais recente vaga de
populismo autocrático.
A questão não é nova. A degeneração da
república romana e ascensão do despotismo imperial, como nos ensinou
Montesquieu, foi marcada pelo emprego sistemático e abusivo de prerrogativas
constitucionais e da legalidade, que terminou por subverter as próprias
virtudes do governo das leis e da separação de poderes.
Embora as instituições políticas brasileiras venham sendo submetidas a um teste extremo de resiliência, que culminou com a eleição de Bolsonaro, é difícil negar que nas últimas semanas a pressão sobre as instituições democráticas tenha aumentado.
De um lado, temos recebido sinais
animadores de que o sistema de separação de poderes vem reagindo de forma clara
na contenção de arroubos autoritários e obscurantistas do Poder Executivo.
Destaque fica com o Supremo Tribunal Federal, que tem empregado o seu capital
político na defesa do bloco constitucional, sob intenso e cotidiano ataque do
bolsonarismo.
Também o Senado Federal parece ter assumido
um papel cada vez mais proeminente na contenção de rompantes inconstitucionais,
especialmente após a instalação da CPI da
pandemia.
Mas, por outro lado, há um crescente
processo de captura de diversas instituições, com potencial de gerar forte
regressão democrática. A constrangedora capitulação do comando do Exército face
ao desejo presidencial de ter um exército para chamar de seu abriu as portas
para um engajamento ainda maior das classes armadas no jogo político
brasileiro. O emprego abusivo da força por policiais militares, em diversas
partes do país, contra opositores do presidente dá a dimensão da crise
contratada pelo comando do Exército.
Concomitantemente, pode-se observar o
emprego cada vez mais corriqueiro da lei, inclusive da LSN (Lei de Segurança
Nacional), como medida voltada a constranger os críticos ao governo. Do guarda
da esquina às mais altas hostes jurídicas, todos se sentem autorizados a
censurar e intimidar seus críticos e opositores.
A Câmara do Deputados, por sua vez, alterou
seu regimento interno, restringindo a participação das minorias no processo de
deliberação parlamentar, o que coloca em risco, sobretudo, o direito de
minorias vulneráveis, assim como a proteção do meio ambiente. Nesse novo
contexto, começou a tramitar o nocivo projeto de emenda constitucional que
determina o voto impresso.
Se aprovado, terá um forte potencial de desestabilizar o pleito eleitoral de
2022. Basta imaginar a ação das milícias governistas na fiscalização da
lealdade do eleitor. Isso sem falar num devastador processo de judicialização,
voltado a desacreditar o pleito.
Como outros processos de regressão
autoritária têm demonstrado, líderes populistas são especialistas em se
apropriar dos símbolos e valores democráticos, reiterando o compromisso de
“jogar dentro das quatro linhas da Constituição”, de “defender a liberdade” e a
“vontade soberana do povo”, num verdadeiro simulacro contra a Constituição e os
direitos fundamentais que juram proteger.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP
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