- O Globo
O fanfarrão Jair Bolsonaro foi ao Supremo
contra os decretos por meio dos quais governadores estabeleceram medidas
restritivas de circulação. Nisso — num miado de gatinho — transformou-se aquele
decreto valentão, que já estaria pronto, com que o presidente ameaçava sustar
atos de governantes eleitos, atos todos submetidos a controle de
constitucionalidade, atos legítimos de governadores que trata como tiranos
usurpadores de liberdades individuais. Blá-blá-blá.
Não é novidade que Bolsonaro, o jactancioso, joga para a galera. Não pode ser novidade que sua condição de bravateiro não lhe exclui o caráter de autocrata em campanha permanente contra o equilíbrio institucional. As coisas se combinam, a primeira frequentemente camuflando o alcance da segunda. Já escrevi sobre o movimento pendular em que opera o presidente-caô. Enquanto, na ponta do mundo real, pressionado pela imposição da realidade, precisa ceder à aquisição de vacinas, filia-se ao Patriota e depende de Arthur Lira, Valdemar Costa Neto e de Roberto Jefferson, na outra extremidade, a delirante, arma discurso inflamado para alimentar, com compensações retóricas radicalizadas, sua base social sectária.
Sabe que a contenda com governadores, seus
inimigos artificiais mais frequentes, rende-lhe pontos fáceis — não nos sendo
autorizado desconsiderar o que esses governadores também são: chefes das
polícias em cujas franjas Bolsonaro tenta cultivar um estado amotinado
constante. Vem aí a Copa América, uma barbaridade que o Brasil traz para si.
Não é improvável que alguns governos estaduais recorram para barrar a
consumação do crime em seus domínios. Nem que se multipliquem movimentos de rua
contrários ao evento. Ou seja: mais superfície para confronto, mais conflitos
projetados. Um jogo de ganha-ganha para o bolsonarismo. Paraíso para que o
presidente encha a pança de seus apoiadores, enquanto os orçamentos secretos
ampliam o Vale do São Francisco até o Amapá.
Não lhe tem sido difícil sustentar esse
balanço rebolativo. A turma engole qualquer balela do mito. Ele vendera uma
brava canetada contra os ditadores que nos trancam em casa. Entregou uma ação
careta ao STF; isso depois de haver conversado com o presidente do tribunal — a
própria representação do establishment que não o deixaria governar e contra o
qual diz lutar. Ocasião em que terá sido informado de que o Supremo derrubaria
o tal decreto, talvez mesmo orientado sobre o caminho a tomar peticionando à
corte. Tudo bonitinho. Bolsonaro obediente, quiçá grato. Luiz Fux, afinal, o
poupara de uma vergonha maior. E o presidente da República retribuiu o gesto
concebendo uma nova modalidade de apelação ao STF: a ADF, Ação Direta de
Fantasia.
Contra um lockdown imaginário, uma ação de
mentirinha. Conselheiro Fux decerto convencido de que o parlapatão Bolsonaro
não passaria mesmo de um arengueiro, decerto também desconhecendo a natureza de
como atua, no século XXI, o golpismo autocrático; a ADF forjada como gancho
para o velho discurso influente — não raro proferido em meio a generais — do
“eu tento fazer, mas o Supremo não deixa”.
Na última sexta, no Amazonas, o presidente
boquirroto subordinou a liberdade do brasileiro à gestão do Exército; como se
não houvesse a Constituição de que Fux é guardião. Fez isso discursando a
militares, dentro de uma instalação militar. Segundo Bolsonaro, caberia aos
fardados decidir como o povo viverá. Sentado à mesa, expondo-se diretamente à
contaminação ideológica do bolsonarismo, o comandante do Exército, Paulo Sérgio
Nogueira, ouviu o presidente — o homem do “meu Exército” — dizer que “somos
seres políticos”, generais incluídos.
Expressava-se ali — alô, Fux — um
bravateiro autocrata que é chefe de um governo militar e que mantém sob vara
dóceis generais e suas previdências; e que, dessa maneira, de Braga Netto em
Braga Netto, dissolveu a fronteira entre Planalto e Exército, o mesmo Exército
com que ameaça governantes eleitos, o mesmo Exército que produziu milhões de
comprimidos de cloroquina com dinheiros que se deveriam destinados ao
enfrentamento da peste. Tudo, claro, “dentro das quatro linhas da
Constituição”.
Quantas vezes terá o ministro da Defesa,
caladinho, escutado Bolsonaro exercer seu poder declarando esperar que os
militares não precisassem entrar em campo? Bravata? Sim; mas a que custo — com
quanto esgarçamento — para a costura republicana? Até que ponto, por exemplo, a
consciência sobre um Exército infectado — corrompido pela politização das armas
— terá impelido Pazuello ao palanque, seguro em haver cumprido uma missão e
confiante numa acomodação?
Nessa mesma viagem amazônica, Bolsonaro
teria pedido a Nogueira que não punisse o ex-ministro da Saúde, general da
ativa, pela participação — em grave afronta aos códigos militares — naquele ato
político no Rio. Circunstância em que teríamos, numa espécie de emboscada, o
presidente assediando o comandante do Exército. Circunstância só possível por
ter o comandante do Exército aceitado figurar como plateia para o
golpismo-garganta de Bolsonaro — a Força desde há muito dentro de uma armadilha
de que já não pode sair.
De miado em miado, de ADF em ADF, o presidente-caô testa as brechas e investiga o “ser político” existente nos Fux. Miau. Não há razão para que Bolsonaro não conte com a caixa de areia do Exército. Qual mais?
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