- O Globo
Ou quase. Porque acho que só comigo vai
tudo azul, como diz a canção de Caetano. Em redor, não se pode dizer o mesmo.
Do ponto de vista pessoal, não tenho do que me queixar. Só nos últimos dez
dias, além das lives, dei mais entrevistas que no ano inteiro — forma
encontrada por mais de uma dezena de jornais e rádios do país para me
homenagear pelos 90 anos. Se eu soubesse que receberia tanto carinho, teria
feito antes. Ancelmo Gois, que é um gozador, diante de minha alegre disposição,
previu que, pelo jeito, estes são “os primeiros 90 anos”.
Porém seria preciso ser muito insensível
para se considerar completamente feliz vivendo num estado em que uma
“gripezinha” já exterminou 50 mil pessoas e num país em que ela está fazendo o
mesmo com mais de 460 mil. E que vive também um inédito acúmulo de crises:
crise sanitária, com a pandemia; socioeconômica (com quase 15 milhões de
desempregados); política (com um capitão desastrado e seu “gordinho” sinistro);
ambiental (com o ministro do Meio Ambiente suspeito de contrabando de madeira
da Amazônia).
A última notícia infausta atingiu diretamente a imprensa e em especial a mim: a morte de Mílton Coelho da Graça, o melhor exemplar de nossa geração, à memória de quem rendo a seguir minha homenagem.
Um ano depois do golpe militar de 1964,
Mílton apareceu no então “Diário Carioca”, cuja redação eu chefiava, procurando
emprego. Ele acabara de sair da prisão com um pulmão perfurado e com os dentes
da frente quebrados. Fora torturado. Me dirigi então ao doutor Prudente de
Morais Neto, que era o diretor-responsável, e, como colunista, pregava
diariamente contra o comunismo — era um teórico da linha-dura.
Lealmente, resumi para ele de quem se
tratava — de um comunista que acabara de deixar a prisão. O doutor Prudente era
uma pessoa muito especial: como ensinava, com seu exemplo, que não se devem
hierarquizar as pessoas pela ideologia (seu outro grande amigo foi o poeta
Ferreira Gullar, na época comunista), só quis saber se se tratava de um bom profissional.
Diante da minha resposta, o pretendente começou no dia seguinte no copidesque
do “DC”. E os dois acabaram desenvolvendo uma forte amizade.
Tempos depois, já na década de 1980, Mílton
viveu no GLOBO o que considerava serem os anos mais felizes de sua carreira.
Sobre esse período, vale a pena ler o artigo em que Merval Pereira relembrou,
no domingo, com sua invejável memória, os áureos tempos da gestão de Mílton na
chefia da redação deste jornal. Ele vivenciou o que, na sua opinião, “foi um
dos momentos mais marcantes da história do GLOBO. Tão marcantes que Merval já
os tinha registrado no livro que lança no próximo dia 20.
Foi nessa época que o nome do jornalista
foi incluído na lista que a ditadura ordenava que o jornal dispensasse por
subversão. A resposta do então diretor, doutor Roberto Marinho, ficou célebre,
pois era um desafio com o risco de represália. “Dos meus comunistas, cuido eu”,
ele revidou. E todos permaneceram nos seus empregos. O próprio Mílton,
orgulhoso, me contou o episódio.
Moral da história: não se faz mais direita
como antigamente.
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