- O Globo
O trabalho da CPI para iluminar os
escombros, resgatar a verdade e inculpar eventuais responsáveis é longo e
promissor. Os timoneiros são os fatos. Em respeito ao direito de defesa, ao
contraditório, é prematuro apontar os culpados pelo morticínio. Mas já é
possível, com dados sujeitos a confirmação, fazer um balanço parcial. O saldo
revela quanto a omissão, dolosa ou não, impactou as mortes e perdas
irreparáveis. Cada ato deliberado e negacionista, cada equívoco, cada sabotagem
à ciência se eternizou em mortes.
Após a primeira etapa de depoimentos, podemos afirmar que milhares de vidas poderiam ter sido preservadas com escolhas sensatas, responsáveis e científicas. Ao fim dos trabalhos, teremos como quantificar o número de óbitos evitáveis, que redundaram em lágrimas e destruição de famílias. A estatística assombrosa poderia ter sido atenuada se maiores tivessem sido a compreensão e o engajamento do governo. As escolhas vão desde a compra tempestiva de vacinas até recomendações elementares, como distanciamento, uso de máscaras, ações orgânicas com estados e renda digna e continuada para quem precisa.
O retrospecto do obscurantismo sugere um
método de recusa sistemática das vacinas e prioridade de estratégias
anticientíficas. Do Butantan, foram desprezadas, em cinco meses, três ofertas
de 60 milhões ou 100 milhões de doses, com disponibilidade de 5,5 milhões já em
dezembro de 2020. As seis propostas da Pfizer — 70 milhões — foram ignoradas
por seis meses, e 1,5 milhão seriam aplicadas em 2020. Em dezembro de 2020, poderíamos
ter vacinado 7 milhões de brasileiros.
Em apenas um dia, 18 de agosto de 2020, o
governo deixou de comprar 60 milhões da CoronaVac e outros 70 milhões da
Pfizer: 130 milhões de doses, mais da metade dos nossos habitantes. No
consórcio Covax, o Brasil recusou doses para 50% da população, optando por
inexplicáveis 10%. A matemática é apartidária e reveladora: o Brasil, de
maneira contumaz e deliberada, abriu mão de milhões de imunizantes durante o
ano de 2020.
O negacionismo nos posicionou como segundo
país com maior número de mortes, com a exasperante marca que supera mais de 460
mil vítimas até agora. Em plena pandemia, recursos públicos foram desperdiçados
na produção de cloroquina, ineficaz para a Covid-19. Uma receita duplamente
mortal, já que retirou recursos das vacinas, e o medicamento acarreta efeitos
colaterais graves. A má gestão no desabastecimento de oxigênio de Manaus pode
receber qualquer nome, menos gestão. O governo tinha conhecimento de que a
calamidade era iminente. Que fez para impedir a tragédia?
Na CPI, vivenciamos a angústia de suportar
a pantomima de depoimentos despudorados, apesar do verniz e das formalidades. É
como assistir a alguém pisoteando cadáveres, sem nenhuma empatia, como se ali
estivesse diante de um embate político. É escárnio, desrespeito e uma aposta
mortífera de que tudo não passa de uma “tormenta passageira”. Grave erro de
diagnóstico. A pandemia é a mais profunda e incurável cicatriz da nossa
história. Os que atuam para bolhas de convertidos carregarão a vergonha e a
desonra para o resto dos dias.
Positivo é que a CPI, de forma inédita,
gerou uma rede espontânea de colaboradores e reconectou o Parlamento com a
sociedade. Nos chegam vídeos, áudios e documentos que contribuem para desmontar
farsas maquinadas no gabinete do ódio e no ministério da doença. Temos uma rede
de checagem, um gabinete do bem, voluntário, em defesa da luminosidade, da
ciência e da vida. Essa interação ganhou um forte impulso depois que abrimos a
perguntas dos internautas, todas pertinentes.
O extrato parcial do negacionismo exibe um
placar de mortes que não para de subir, um conjunto de inações que não para de
se repetir. Atitudes que, antes, durante e ainda agora, causam indignação e
perplexidade. Ao final da CPI, haverá um balanço definitivo para o conhecimento
da sociedade. A sensação é que assistimos ao fim de prolongado eclipse, quando
as sombras vão se dissipando, e a luz vai ressurgindo gradualmente e renovando
a vida.
*Senador (MDB-AL) e relator
da CPI da Covid
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