terça-feira, 1 de junho de 2021

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Primeiro, o Um; depois, o Dois

- Valor Econômico

A crise econômica, social e política só vai recuar se as intolerâncias forem dissolvidas no compromisso

Nelson Jobim foi escolhido por Ulysses para acompanhar a elaboração da Constituição nos idos de 1988. Lembro-me bem de sua faina em aperfeiçoar a redação de artigos, parágrafos e incisos que seriam debatidos nas plenária da Assembleia Constituinte.

Jobim voltou a exercer a força democrática que habita seu espírito ao convidar Lula e Fernando Henrique para um jantar. Não sei como foi a degustação das iguarias, mas o noticiário sobre a ágape exalou uma brisa reconfortante nesse momento de maus odores na Terra Brasilis.

Na posteridade do evento não faltaram os narizes torcidos dos partidários do Um e do Outro. Torcer o nariz não é tão grave quanto tapar o nariz diante do Outro Semelhante. Uns e Outros certamente tiveram de conviver com repulsas explicitadas em gestos de tapar o nariz quando o Outro se atreve a frequentar os ambientes supostamente reservados para os “homens bons”. Pois foi o que aconteceu no elevador de um famoso e eficiente hospital de São Paulo. Carregada em uma cadeira de rodas, a senhora de cabedais tapou o nariz quando um enfermeiro negro ousou entrar no transportador.

Falar em Ulysses Guimarães desperta imediatamente a lembrança de seu apego à multidão de Outros. Em um domingo paulistano, logo após a derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura. Vou invocar aqui o testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e José Gregori. Também me recordo da presença de Fernando Henrique Cardoso.

Ulysses levantou-se e respondeu aos que tentavam convencê-lo das conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas, guardei as frases que provocaram lágrimas em sua mulher, Dona Mora, sentada em um sofá mais distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês, a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade popular”.

Em artigo publicado muitos domingos depois da peroração do Senhor Diretas, no já distante 16 de março de 2016, o ex-presidente Fernando Henrique cuidou com sensatez dos riscos que então sacodiam o país à vésperas do impeachment de Dilma Rousseff. Meu professor de sociologia Fernando advogava um acordo nacional, conclamação que poderia dignificar uma liderança respeitadora da democracia naquele momento de angústia.

Nos anos 70 e 80, testemunhei a intensa convivência entre Lula e Fernando Henrique. Cada um a seu modo exercitava a política como vocação e mediação. Mediação entre os dois sistemas de vida que regulam o equilíbrio das sociedades capitalistas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses que se realizam através do mercado. Nesse jogo de mediação, crucial para a vida moderna e civilizada, deve-se reconhecer a legitimidade dos interesses contrapostos, um exercício permanente dos governos comprometidos com a soberania popular.

A Constituição de 1988 aplainou o terreno para o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos, já acolhidos na posteridade da Segunda Guerra Mundial por europeus e americanos. Roosevelt, Attlee, De Gaulle, De Gasperi e Adenauer sabiam que não era possível entregar o desamparo das massas ao desvario de soluções salvacionistas e demolidoras das liberdades. Por isso sacralizaram os princípios do liberalismo político para expurgar da vida social o arranjo econômico liberal dos anos 20, matriz dos coletivismos.

Ao impor o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o nascimento até a morte, as lideranças democráticas subiram os impostos sobre os afortunados e, assim, ensejaram a prosperidade virtuosa, igualitária e garantidora das liberdade civis e políticas nos Trinta Anos Gloriosos.

Na periferia do capitalismo, o desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 imaginou que o crescimento econômico resolveria naturalmente os desequilíbrios sociais e econômicos herdados da sociedade agrário-exportadora e semicolonial. A despeito de suas façanhas, o desenvolvimentismo transportou as iniquidades do campo para as cidades, onde, até hoje, as mazelas da desigualdade e da violência sobrevivem expostas nas periferias e nos morros.

Nas pegadas da Constituição Cidadã do doutor Ulysses Guimarães, as políticas sociais empreendidas por dona Ruth Cardoso e desenvolvidas com grande intensidade e acerto pelo PT fizeram avançar o projeto de redução das desigualdades. Não lograram, porém, extirpar as iniquidades instaladas no DNA de certa plutocracia nativa.

A crise econômica, social e política em curso só vai recuar se as intolerâncias forem dissolvidas no compromisso, sem abdicar das convicções. Ela não vai ser resolvida com as truculências do personalismo exclusivista e muito menos com os exclusivismos das truculências individualistas. Sem a percepção das verdadeiras razões do retrocesso que nos aflige e da necessidade de juntar forças, haverá, sim, ressentimento, incerteza política, crise social e turbulência financeira.

Retomo a sabedoria de Oswaldo Brandão, treinador que dirigiu os três grandes do futebol paulista, Palmeiras, Corinthians e São Paulo. Sua gentileza gaúcha permitiu que um torcedor palmeirense escutasse a palestra que proferiu nos vestiários antes da partida decisiva de 22 de dezembro de 1974. Ele dizia aos jogadores: “primeiro o Um, e depois o Dois. Um, a defesa: Dois, o ataque. Vou me abster de proclamar o resultado do prélio em respeito ao bravo e glorioso rival.

Assim, ao incorporar esse espírito de saudável rivalidade, sugiro acatarmos as recomendações do grande comandante Brandão. Primeiro a defesa da civilização e dos princípios do liberalismo político e republicano; depois a disputa democrática em torno dos programas sociais e econômicos. Primeiro, o Um; Depois o Dois.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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