O Estado de S. Paulo
Ou assume a defesa da liberdade acadêmica, ou será apenas obediente, como quer o ministro
No dia 23 de outubro de 1975, Ana Rosa
Kucinski Silva, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo
(USP), foi demitida por “abandono de função”. Um ano e meio antes, em 22 de
abril de 1974, aos 32 anos, havia caído nas mãos da repressão da ditadura, que
fez dela uma desaparecida política. Mesmo assim, a burocracia universitária,
solícita para cima e implacável para baixo, resolveu demiti-la de forma
desonrosa. Colegas de Ana Kucinski protestaram – aos resmungos, como era
possível naqueles tempos –, mas não houve jeito. A militante da Ação
Libertadora Nacional (ALN), depois de perder a vida nas masmorras, perdeu o
título de professora da USP. Sua demissão, com carimbos e rubricas sobre papel
timbrado, marcou de vergonha a história da USP.
Naqueles anos de chumbo, até mesmo empresas privadas encontraram maneiras de proteger seus empregados perseguidos pelos órgãos de segurança do regime. Jornalistas de esquerda escaparam da morte porque contaram com a ajuda não só de seus camaradas, mas também de seus patrões. Na USP, entretanto, não foi assim. Já nas primeiras listas de cassação, os medíocres invejosos comemoravam, silentes, nutrindo seu carreirismo estulto. É possível que, no episódio Ana Kucinski, algum sabujo tenha confidenciado em surdina algo como: “Mas ela também era muito radical”. Outro talvez tenha aconselhado os pares a não “afrontar” ou “arrostar” os militares. Foi um desastre indigno e voluntário. Ao se dobrar para os camburões e os coturnos, a USP entregou mestres e estudantes aos cachorros, que depois os abandonaram aos abutres.
Uma universidade que não defende a vida de
seus quadros não sabe a que veio, perde a identidade. Uma universidade que
fecha os portões para os sonhos de seus estudantes, que faz pouco da
integridade de quem dá aulas e imagina ter sua substância não no saber, mas em
repartições movidas por anônimos robóticos, é uma filial de açougue.
Agora, aqui estamos nós, os professores
universitários que não morreram. Estamos sob risco. Não cometamos os mesmos
erros do passado. O poder que aí está quer nos calar, enquanto procura pôr na
rua os calhambeques a que chama de blindados, para golpear a democracia. A
visão militarista do ensino produz estragos e mais estragos. Esta semana, o
ministro da Educação declarou que os reitores das universidades federais “não
precisam ser bolsonaristas, mas também não precisam ser esquerdistas, não podem
ser lulistas”. O ministro quer um quartel em cada escola.
Fiquemos atentos. Se pactuarmos com o
arbítrio que se desinibe, estaremos entregues aos cachorros simbólicos e seus
abutres.
É verdade que os poderosos de hoje não têm
força para dar cabo da existência física de professores, mas eles têm o
desplante de atentar contra a nossa reputação e fazem de tudo para nos
intimidar. Entre tantos ataques, o mais eloquente é o que se move contra o
professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP. Autor de
vários textos na imprensa, colunista do diário Folha de S.paulo, ele é acusado
de calúnia, injúria e difamação por autoridades identificadas com o presidente
da República. O procurador-geral da República, Augusto Aras, move um processo criminal
contra ele. O ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes, indicado por
Bolsonaro, requisitou uma investigação.
Para complicar, a USP viu-se diretamente
enredada na perseguição. No início de maio, Aras solicitou formalmente à
Reitoria que o professor fosse punido pela Comissão de Ética da casa. O ofício
do procurador-geral, que pretende criminalizar absurdamente a liberdade de
expressão e de imprensa, chegou à Cidade Universitária há três meses e até
agora não recebeu a negativa categórica que merece. A demora preocupa.
A direção da USP tem enfrentado com firmeza
as sandices autocráticas do governo federal. Nesse caso, porém, tarda. Difícil
entender por quê. Será por obra de miudezas e intrigas mesquinhas? Será que
agora, como em 1975, se ouvem nos bastidores dos órgãos colegiados comentários
do tipo “não é hora de bater de frente com as autoridades” ou “ele também é
muito radical”? Será essa a explicação para a lentidão?
Não, não pode ser. O que está em jogo aqui
não é se os artigos do professor são mais ou menos agressivos, não é o melindre
das autoridades. O que está em jogo é uma questão de princípio. Ou a
universidade assume a defesa da liberdade acadêmica, ou ficará sitiada e será
apenas obediente, como quer o ministro da Educação.
Conrado Hübner já recebeu solidariedade
expressa de seus colegas, de dezenas de instituições e de renomados
intelectuais do Brasil e do exterior. Só lhe falta o apoio das mais altas
instâncias da USP. Esse apoio não falhará, sabemos que não falhará, mas a
demora realmente preocupa.
Em 22 de abril de 2014, 40 anos depois do
desaparecimento de Ana Rosa Kucinski Silva, o instituto onde ela lecionava
reconheceu o erro, revogou a demissão e pediu desculpas à família. No caso de
Conrado Hübner, todos temos certeza, a espera por justiça não será tão longa.
* Jornalista, é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário