quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Conrado Hübner Mendes* - A Blitzkrieg de Arthur Lira

Folha de S. Paulo

Autoritarismo legislativo faz definhar o direito de oposição democrática

O cinismo político não dispensa um jargão. Uma das palavras na ponta da língua do cínico político é “modernização”. Quando ele propõe reformas sob o signo da modernização e se cala sobre as objeções, pode-se apostar no caráter antimoderno do projeto. Tem sido essa a agenda de Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados: reformas marcadas pelo autoritarismo do procedimento e regressividade da substância.

Em maio, a Câmara aprovou mudança no regimento para minimizar o apelidado “kit obstrução”. Lira explicou: “A modernização do regimento interno vai qualificar o debate e aumentar —ao invés de diminuir— o tempo de discussão das matérias”.

“Kit obstrução” é um disfemismo do jargão parlamentar, um eufemismo invertido que, em vez de suavizar termo incômodo, serve para depreciar e distorcer o conceito que o termo carrega. Assim como seu primo, o “kit gay”, o kit obstrução foi estratégia retórica bem-sucedida para estigmatizar direitos procedimentais da oposição e das minorias. Por meio desses direitos, podia-se desacelerar o passo e estender participação e deliberação da sociedade.

A reforma regimental “modernizante” foi “quase um golpe interno”, segundo João Feres Júnior, do Observatório do Legislativo Brasileiro. Concentrou poderes nas mãos do presidente da casa e facilitou a blitzkrieg legislativa em curso.

Essa tempestade atordoante de projetos de lei almeja liquidar ativos constitucionais do país, aqueles objetivos que a Constituição de 1988 tenta perseguir: direitos das crianças, das futuras gerações e de povos tradicionais, proteção do meio ambiente e redução da vulnerabilidade numa sociedade plural e tolerante. Quanto mais projetos simultâneos e em maior velocidade, menor a oportunidade para debate extramuros e aperfeiçoamento.

Democracias buscam equilibrar vontade da maioria e direitos das minorias. Isso se faz por meio de diversos dispositivos, como as declarações de direitos e controle judicial de constitucionalidade, por exemplo. O STF, nesse esquema, operaria essa força contramajoritária. Mas não é a única.

Outra força importante está no próprio Poder Legislativo: não só deve representar, na proporcionalidade possível, as minorias e maiorias sociais, como também deve oferecer espaço para que essas minorias tenham voz relevante e capacidade de influenciar decisões.

O elemento contramajoritário se internaliza, assim, no próprio procedimento parlamentar. E o que se perde em velocidade pode-se ganhar em qualidade e legitimidade.

Lira segue o mote de Eduardo Cunha, que conduziu uma das gestões mais destrutivas na presidência da Casa: “É só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria”.

Já se filiava à sensibilidade de Jair Bolsonaro: “Temos de legislar para a maioria, e não para a minoria. A minoria tem de se curvar, e ponto final”. Ironicamente, a falta do “kit” impediu parlamentares bolsonaristas de adiar a decisão sobre voto impresso, dias atrás.

Sob esse regime de cesarismo legislativo, tramitam na Câmara projetos de enorme gravidade constitucional. Exemplos são inumeráveis: autorizar contratação de jovens sem vínculo trabalhista, férias ou 13°; a pretexto de combater terrorismo, facilitar prisões arbitrárias, repressão das liberdades de expressão, associação e reunião.

A pretexto do direito dos pais sobre a educação dos filhos, projeto permite que crianças larguem ensino escolar (homeschooling); outro impede que redes sociais combatam fake news; outro ainda dificulta, por critério arbitrário (marco temporal), a demarcação de terra indígena; outro premia o roubo de terra pública (grilagem).

No campo da qualidade da competição democrática e das políticas de Estado, debate-se reforma eleitoral que cria o distritão e a volta das coligações eleitorais; reforma administrativa que, a pretexto de melhorar a qualidade do serviço público, facilita a desprofissionalização e inviabiliza administração autônoma e responsável; transformação radical das relações entre Executivo e Legislativo pelo semipresidencialismo.

Lira deseja empurrar tudo isso, e muito mais, tão rápido quanto possível. Sem que tenhamos tempo de entender o que está passando.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

Nenhum comentário: