Folha de S. Paulo
Autoritarismo legislativo faz definhar o
direito de oposição democrática
O cinismo político não dispensa um jargão.
Uma das palavras na ponta da língua do cínico político é “modernização”. Quando
ele propõe reformas sob o signo da modernização e se cala sobre as objeções,
pode-se apostar no caráter antimoderno do projeto. Tem sido essa a agenda
de Arthur
Lira na presidência da Câmara dos Deputados: reformas marcadas pelo
autoritarismo do procedimento e regressividade da substância.
Em maio, a Câmara aprovou
mudança no regimento para minimizar o apelidado “kit obstrução”. Lira
explicou: “A modernização do regimento interno vai qualificar o debate e
aumentar —ao invés de diminuir— o tempo de discussão das matérias”.
“Kit obstrução” é um disfemismo do jargão parlamentar, um eufemismo invertido que, em vez de suavizar termo incômodo, serve para depreciar e distorcer o conceito que o termo carrega. Assim como seu primo, o “kit gay”, o kit obstrução foi estratégia retórica bem-sucedida para estigmatizar direitos procedimentais da oposição e das minorias. Por meio desses direitos, podia-se desacelerar o passo e estender participação e deliberação da sociedade.
A reforma regimental “modernizante” foi “quase um golpe interno”, segundo João Feres Júnior, do Observatório do Legislativo Brasileiro. Concentrou poderes nas mãos do presidente da casa e facilitou a blitzkrieg legislativa em curso.
Essa tempestade atordoante de projetos de
lei almeja
liquidar ativos constitucionais do país, aqueles objetivos que a Constituição
de 1988 tenta perseguir: direitos das crianças, das futuras gerações e de
povos tradicionais, proteção do meio ambiente e redução da vulnerabilidade numa
sociedade plural e tolerante. Quanto mais projetos simultâneos e em maior
velocidade, menor a oportunidade para debate extramuros e aperfeiçoamento.
Democracias buscam equilibrar vontade da
maioria e direitos das minorias. Isso se faz por meio de diversos dispositivos,
como as declarações de direitos e controle judicial de constitucionalidade, por
exemplo. O STF, nesse esquema, operaria essa força contramajoritária. Mas não é
a única.
Outra força importante está no próprio
Poder Legislativo: não só deve representar, na proporcionalidade possível, as
minorias e maiorias sociais, como também deve oferecer espaço para que essas
minorias tenham voz relevante e capacidade de influenciar decisões.
O elemento contramajoritário se
internaliza, assim, no próprio procedimento parlamentar. E o que se perde em
velocidade pode-se ganhar em qualidade e legitimidade.
Lira segue o mote de Eduardo Cunha, que
conduziu uma das gestões mais destrutivas na presidência da Casa: “É só deixar
que a maioria seja exercida, e não a minoria”.
Já se filiava à sensibilidade de Jair
Bolsonaro: “Temos de legislar para a maioria, e não para a minoria. A minoria
tem de se curvar, e ponto final”. Ironicamente, a falta do “kit” impediu
parlamentares bolsonaristas de adiar a decisão
sobre voto impresso, dias atrás.
Sob esse regime de cesarismo legislativo,
tramitam na Câmara projetos de enorme gravidade constitucional. Exemplos são
inumeráveis: autorizar contratação de jovens sem vínculo trabalhista, férias ou
13°; a pretexto de combater terrorismo, facilitar prisões arbitrárias,
repressão das liberdades de expressão, associação e reunião.
A pretexto do direito dos pais sobre a
educação dos filhos, projeto permite que crianças larguem ensino escolar
(homeschooling); outro impede que redes sociais combatam fake news; outro ainda
dificulta, por critério arbitrário (marco temporal), a demarcação de terra
indígena; outro premia o roubo de terra pública (grilagem).
No campo da qualidade da competição
democrática e das políticas de Estado, debate-se reforma eleitoral que cria o
distritão e a volta das coligações eleitorais; reforma administrativa que, a
pretexto de melhorar a qualidade do serviço público, facilita a desprofissionalização
e inviabiliza administração autônoma e responsável; transformação radical das
relações entre Executivo e Legislativo pelo semipresidencialismo.
Lira deseja empurrar tudo isso, e muito mais, tão rápido quanto possível. Sem que tenhamos tempo de entender o que está passando.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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