quinta-feira, 12 de agosto de 2021

José Serra* - Semipresidencialismo, um debate inevitável

O Estado de S. Paulo

O regime misto pode resultar no melhor ou no pior de dois mundos, não há meio-termo

Parlamentarismo e presidencialismo são sistemas de governo excludentes. No parlamentarismo, o chefe do Executivo é eleito, fiscalizado e substituído pelo Parlamento. No presidencialismo, é eleito diretamente pelos cidadãos, fiscalizado e eventualmente afastado por um Parlamento eleito por um sistema independente de voto.

No parlamentarismo, o Legislativo é o único representante legítimo da soberania popular. Já no sistema presidencialista, dois representantes igualmente legítimos exercem a soberania. Logo, o presidencialismo é intrinsecamente conflituoso.

Sendo opostos e excludentes, os sistemas de governo mistos de parlamentarismo e presidencialismo são produto de artifícios institucionais. O resultado dessa mixórdia pode ser um monstro ou um remendo duradouro, como se pode inferir da história dos sistemas políticos. O regime misto pode resultar no melhor ou no pior de dois mundos, não há meio-termo.

Quando se fala hoje de adoção do semipresidencialismo, surge uma reação que parece ter por objeto impor uma censura total à discussão do tema. Quem descarta qualquer debate sobre a oportunidade de alterar o atual regime de governo ignora a crise do presidencialismo, que se tem manifestado de maneira intermitente desde a restauração das eleições presidenciais diretas, com escolha de Fernando Collor, em 1989.

Não se deve fazer uma reforma do sistema de governo em plena crise institucional? Ora, se o sistema político não estivesse atravessando uma crise institucional, cuja alternativa seria derrubar o presidente, por que mudar um sistema político se ele for funcional?

Em 1962, o general De Gaulle, então primeiro-ministro francês, criou o chamado semipresidencialismo para contornar a crise insolúvel entre sua liderança autoritária e a maioria parlamentar. Dissolveu o Parlamento e convocou um plebiscito, que introduziu a eleição direta para presidente. Com isso, em vez de delegado do Parlamento, o presidente francês passou a ser representante legítimo da soberania popular, independente do Legislativo.

O modelo francês é, de fato, um semiparlamentarismo, porque mantém integralmente o regime parlamentar de governo e enxerta a autoridade presidencial, com algumas prerrogativas além das simplesmente protocolares. Quando o presidente francês tem o apoio de uma maioria estável para governar, praticamente exerce o Poder Executivo, assistido por um primeiro-ministro de sua confiança. Se não obtiver maioria, indica necessariamente um primeiro-ministro da maioria parlamentar, que irá formar e liderar o Executivo, sem interferência do chefe de Estado.

Em 1961, o Brasil havia adotado um regime que foi chamado de “parlamentarista”, também diante de uma crise insolúvel: conter uma tentativa de golpe militar contra o presidente João Goulart. Esse “golpe constitucional”, ao contrário do sistema francês, limitou-se a enxertar um governo parlamentar num regime presidencialista puro, criando, de fato, um semipresidencialismo. Mas as amplas prerrogativas do presidente permitiram que, em menos de dois anos, Jango revertesse o regime para o presidencialismo puro. Um ano depois, mantendo uma pauta polarizada que dissipou sua maioria, foi derrubado por um golpe militar que durou 20 anos.

A efetividade do modelo gaullista, que se mantém até hoje na França, é incontestavelmente superior ao modelo janguista, no Brasil, em estabilidade, capacidade governativa e resiliência do sistema para enfrentar crises políticas. Isso porque o sistema exige um Executivo majoritário. Se não tiver maioria, o presidente entrega o governo à maioria parlamentar. Já o enxerto de um Gabinete parlamentar num sistema presidencialista puro, como de novo se propõe, não impede que um presidente minoritário decida exercer o Executivo e tente impor uma pauta inaceitável para a maioria parlamentar, criando uma crise insolúvel.

Alega-se que a introdução de um novo sistema de governo fere direitos adquiridos dos que aspiram à Presidência da República em 2022. Ora, qualquer suposto aspirante à Presidência tem o direito de candidatar-se nos termos da lei, mas não possui um imaginário direito de ser eleito, menos ainda com as prerrogativas de sua escolha. Nossa legislação autoriza mudanças no sistema eleitoral, até um ano antes das eleições, que podem alterar os direitos dos eleitores, dos partidos e dos candidatos.

A História mostra que a prevalência de uma crise insolúvel é justamente o que tem suscitado mudanças no sistema de governo. E é por isso que tem de ser imediata. Elogia-se a cautela da proposta avançada pelo presidente da Câmara, por prever a adoção do governo parlamentar para 2026. Ora, se fosse possível esperar cinco anos para reverter a crise do governo Bolsonaro, não vejo razão para uma reforma radical feita de improviso.

A crise permanente do presidencialismo no Brasil e o temor de colapso da gestão de Jair Bolsonaro põem na ordem do dia a reforma de nosso sistema de governo. Não é aceitável opor-se ao debate aberto dessa questão vital.

* José Serra, senador (PSDB-SP)

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