EDITORIAIS
Cabe a Queiroga a responsabilidade por
deter a Delta
O Globo
Esperava-se que, sob Marcelo Queiroga, o
Ministério da Saúde mudasse de atitude no combate à pandemia. Apesar do avanço
da vacinação nos últimos meses, o desempenho brasileiro ainda deixa a desejar
diante da necessidade imposta pelo avanço da variante Delta do coronavírus.
Queiroga parece mais preocupado em satisfazer às inclinações ideológicas mais
nefastas do presidente Jair Bolsonaro do que em combater o vírus seguindo as
recomendações médicas e científicas.
Anteontem ele deu entrevista a um canal
bolsonarista propagador de desinformação sobre a pandemia e sobre as urnas
eletrônicas, cuja verba publicitária foi retida pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) e cujas ações são investigadas pela CPI da Covid. O mero fato
de uma autoridade da República se dignar a falar com tal veículo já seria
absurdo. Queiroga foi além. Em contraste com declarações anteriores, criticou a
obrigatoriedade do uso de máscaras, comprovadamente eficaz para deter o
contágio. “Somos contra essa obrigatoriedade”, afirmou. “O uso de máscaras tem
de ser um ato de conscientização.”
O aceno ao negacionismo bolsonarista poderia ser inconsequente, não viesse num contexto de confusão na distribuição de vacinas e falta de uma estratégia coerente para deter a Delta. Em sua propaganda, o governo tem propagado a mentira de que a vacinação está mais avançada no Brasil que nos Estados Unidos. Nada mais falso. No início da semana, 60% da população americana tomara ao menos uma dose da vacina, ante 57% da brasileira.
Como todas as vacinas perdem eficácia
diante da Delta, o que importa é o total que recebeu o esquema completo (duas
doses ou dose única), que garante proteção razoável: 51% nos Estados Unidos;
apenas 24% no Brasil. Estamos, portanto, distantes do patamar de imunidade
coletiva que leva à extinção gradual do vírus (estimado em 85% da população
para a Delta). Para piorar, países avançados na vacinação — caso de Israel, com
a vacina da Pfizer — detectaram queda na imunidade depois de seis meses,
desencadearam um esforço nacional para aplicar uma terceira dose e voltaram a
impor restrições.
Tal quadro não deixa dúvidas sobre as
prioridades. Primeiro, é necessário acelerar a aplicação da segunda dose para
garantir a proteção contra a Delta. Em vez de 12 semanas, o intervalo deve ser
reduzido, e o reforço com vacinas distintas deve ser encorajado quando embasado
em evidências (como anunciaram que farão alguns governos e prefeituras).
Segundo, na dúvida sobre onde alocar as doses disponíveis, é preciso dar
preferência aos lugares onde a Delta avança, em vez de se sujeitar a
conveniências políticas ou de adotar o critério aparentemente “neutro”, mas
epidemiologicamente incorreto, de proporcionalidade à população. Terceiro, é essencial
garantir quanto antes a terceira dose aos grupos vulneráveis vacinados no
início do ano.
Tudo isso exige uma estratégia nacional,
responsabilidade inequívoca do Ministério da Saúde. Em vez de liderá-la,
Queiroga fica se equilibrando entre os delírios irresponsáveis do chefe e as
exigências da realidade. Só precisa lembrar que o vírus não está nem aí,
continuará a matar enquanto houver população sem máscara, não vacinada e
aglomerada. Queiroga pode até tentar empurrar a conta da falta de doses à indiscutível
incompetência do antecessor, Eduardo Pazuello. Mas, se o Brasil perder a
batalha para a Delta, a responsabilidade será toda dele.
TCU acerta ao destravar leilão de 5G nas
telecomunicações móveis
O Globo
É uma boa notícia a aprovação pelo Tribunal
de Contas da União (TCU) das regras do edital para o leilão de 5G. O ministro
Aroldo Cedraz tentou adiar o julgamento e acabou sendo voto vencido. O tema
voltará ao plenário na semana que vem para recolher o restante dos votos, mas
não há expectativa de reviravolta. O leilão, segundo o ministro das
Comunicações, Fábio Faria, deverá acontecer ainda neste ano, em setembro ou
outubro.
A transição da rede 4G para a 5G traz
benefícios distintos dos experimentados quando da mudança do 3G para o 4G. Não
se trata de apenas um aumento na velocidade de transmissão, de conseguir baixar
um filme no smartphone em questão de segundos. O 5G abre um sem-número de
possibilidades de negócios e serviços, da popularização de carros autônomos às
cirurgias médicas orientadas à distância. Uma comparação mais realista seria a
transição do mundo sem internet para o on-line nos anos 90.
O edital faz bem ao evitar o banimento da
Huawei, fabricante chinesa de equipamentos de 5G que vem sofrendo restrições em
vários países por pressão dos Estados Unidos. Os americanos argumentam que as
ligações da Huawei com o governo chinês tornam seus equipamentos vulneráveis à
espionagem.
É um argumento fraco, já que vários
provedores de serviços digitais americanos também são vulneráveis — da última
vez em que ficou comprovada a espionagem de um governo estrangeiro no Brasil,
ela foi obra dos Estados Unidos, e o então vice-presidente Joe Biden se viu na
posição desconfortável de pedir desculpas ao governo brasileiro.
Do ponto de vista estritamente técnico, não
há nada que distinga a Huawei de outras empresas de tecnologia. A prevenção
contra espionagem e ações indesejadas deve ser prioridade de qualquer governo,
independentemente da nacionalidade dos fornecedores.
O ponto mais controverso do edital é a obrigação
de que os vencedores da licitação construam também uma rede privada de
comunicação para todos os Poderes. A medida é parte de uma tendência vista em
algumas agências governamentais de outros países. No exterior, multinacionais
também têm investido em redes privadas, mais protegidas contra invasões. O
investimento estimado em R$ 1 bilhão certamente tornará mais cara a fatura para
quem vencer o leilão. As exigências, que acabam por excluir os equipamentos
chineses na rede privada do governo, podem ser descabidas, mas não a ponto de
tornar a licitação inviável.
De todo modo, o Brasil faz bem em não
fechar a porta para a China na rede destinada ao mercado. Banir a Huawei,
empresa mais avançada em 5G, cujos equipamentos são mais competitivos, custaria
mais caro, poderia impedir a expansão da rede na velocidade desejada e
atrasaria sem necessidade a chegada ao Brasil dos benefícios da quinta geração
nas telecomunicações móveis.
Mais liberdade, mais prudência
O Estado de S. Paulo
Desde o dia 17, todos os estabelecimentos
comerciais do Estado de São Paulo passaram a operar sem restrições de ocupação
e horário. Eventos com potencial de aglomeração, como shows, festas em casas
noturnas e competições esportivas com público seguem vetados pelo menos até
novembro. Regras como o uso de máscaras, distanciamento social e protocolos de
higiene permanecem em vigor.
O momento é paradigmático. Como em outras
partes do mundo, fatores como a densidade populacional e a alta circulação de
estrangeiros e nacionais em São Paulo favoreceram a disseminação do vírus. O
Estado registrou o primeiro caso e a primeira morte, foi um dos epicentros da
crise no Brasil e um dos primeiros a adotar restrições duras.
Mas de São Paulo também veio a primeira e
mais aplicada vacina no Brasil, a Coronavac, através dos esforços do governo na
promoção da parceria entre o Instituto Butantan e a farmacêutica Sinovac. O
Estado lidera a taxa de imunização: quase 70% receberam a primeira dose e quase
30% estão imunizados. Na capital, a Virada Vacinal concluiu a aplicação da
vacina em 100% da população adulta.
No Brasil, 55% da população foi vacinada
com a primeira dose e 23% estão imunizados. Pela primeira vez desde outubro,
nenhum Estado tem mais de 80% das UTIs ocupadas. Pela oitava semana consecutiva
o ritmo de contágio (Rt) se manteve abaixo de 1 – se é superior, significa que
cada infectado transmite a mais de uma pessoa e a propagação avança.
Há boas razões para o otimismo. Mas o pior
que poderia acontecer é a população e as autoridades se deixarem intoxicar por
um clima de “já ganhou”. No atual estágio da guerra contra esse inimigo novo,
invisível e em constante mutação, tão razoável quanto esperar pelo melhor é se
preparar para o pior.
Em Israel, por exemplo, que se tornou uma
espécie de laboratório para o mundo ao se colocar na vanguarda da imunização, a
variante Delta, sobre a qual uma das poucas certezas é de que é imensamente
mais transmissível, começa a gerar apreensões. As vacinas da Pfizer têm se
comprovado eficientes para prevenir mortes e internações, mas a eficácia contra
as infecções caiu expressivamente. O governo começou a aplicar terceiras doses
e advertiu que, caso se mostrem ineficazes, um novo lockdown pode ser
inevitável.
Isso não é razão para pânico. Ainda não é
clara a eficácia das outras vacinas, e outros países adotaram estratégias
diferentes em relação, por exemplo, aos grupos de risco e intervalos entre as
doses. Mas, enquanto a comunidade científica investiga o alcance dessa e outras
variantes, as autoridades precisam projetar cenários de risco e estratégias
contingenciais relacionadas a questões como testagem, replanejamento da
imunização, reservas de UTIs, equipamentos e insumos médicos ou o retorno das
restrições.
Mais liberdade exige mais responsabilidade.
As campanhas de conscientização deveriam se intensificar na mesma proporção da
flexibilização. Tão importante quanto o dever de cada um de respeitar os
protocolos sanitários e medidas básicas de higiene para sufocar a epidemia é o
dever de sufocar a infodemia.
No Brasil, como se sabe, o epicentro da
ameaça está no Palácio do Planalto. O irremediável presidente da República
segue contrariando as orientações de seu próprio Ministério da Saúde e das
autoridades médicas em sua campanha de desinformação a respeito do uso de
máscaras, eficácia das vacinas e propaganda de tratamentos não comprovados.
Todos os dias a CPI do Senado produz pilhas de evidências da incúria e da má-fé
de Jair Bolsonaro. Enquanto a população aguarda o momento em que ele e seus
correligionários serão responsabilizados por seus malfeitos, é dever de todos
disseminar essas evidências para desmoralizá-los e achatar a curva de
desinformação.
É razoável e sadio que, na medida em que o
controle sobre a peste aumenta, cada vez mais brasileiros gozam da
flexibilização, retomando gradualmente suas rotinas de trabalho e lazer. Mas a
guerra não terminou. Se a ordem do dia é cada vez menos “Fique em casa”, isso
significa que deve ser cada vez mais “Fique alerta!”.
Augusto Aras e a lei
O Estado de S. Paulo
PGR manifesta cuidadoso alinhamento com os interesses de Jair Bolsonaro
No início de julho, a ministra Rosa Weber,
do Supremo Tribunal Federal (STF), fez um inusitado alerta. “No desenho das
atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das
ações dos Poderes da República”, disse a ministra. O procurador-geral da
República, Augusto Aras, não queria dar andamento à investigação contra o
presidente Jair Bolsonaro por crime de prevaricação, no escândalo envolvendo a
compra da vacina Covaxin, e Rosa Weber teve de lembrar o chefe do Ministério
Público da União de qual era seu papel.
Após o alerta da ministra do STF, a
Procuradoria-Geral da República (PGR) reconsiderou o caso e pediu a abertura da
investigação contra Bolsonaro. Era o dia 2 de julho. Desde então, aconteceram
fatos importantes envolvendo a PGR. No dia 21 de julho, o presidente Jair
Bolsonaro propôs a recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da
República. O atual mandato termina em setembro. A despeito da abertura de
investigação contra o presidente da República por suspeita de prevaricação, a
atitude de Augusto Aras tem sido exatamente a mesma: a defesa constante dos
interesses do Palácio do Planalto. Nem parece que a função institucional do
Ministério Público é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
Os casos de omissão acumulam-se. Por
exemplo, Augusto Aras não viu nenhum problema na manobra orçamentária, revelada
pelo Estado,
envolvendo as emendas do relator-geral, o chamado orçamento secreto. O parecer
da PGR enviado ao Supremo foi contrário às ações dos partidos Cidadania, PSB e
PSOL que sustentam a inconstitucionalidade do orçamento secreto.
Em vez de sintonia com a ordem jurídica,
Augusto Aras manifesta cuidadoso alinhamento com os interesses de Jair
Bolsonaro. O procurador-geral da República defendeu a abertura de templos na
pandemia, foi contrário à apreensão do celular do presidente no inquérito sobre
interferência política na Polícia Federal, apoiou a pretensão de Flávio
Bolsonaro a respeito do foro competente no caso das rachadinhas, defendeu a
possibilidade de o governo federal divulgar medicamentos sem eficácia
comprovada contra a covid, relativizou a gravidade de dossiês produzidos pelo
Ministério da Justiça contra críticos do governo, entre outros casos.
Especialmente escandalosa foi a atitude do
procurador-geral da República no inquérito sobre a organização e o
financiamento dos atos antidemocráticos. Não obstante a Polícia Federal ter
relatado indícios de crimes, Augusto Aras pediu o arquivamento da investigação
que atingia diretamente parlamentares bolsonaristas.
Perante tal conduta, cinco
subprocuradores-gerais da República aposentados levaram ao Conselho Superior do
Ministério Público Federal (CSMPF) um pedido de investigação contra o atual
procurador-geral, Augusto Aras, por suspeita de prevaricação. Entre outros
fatos, a representação menciona possível demora de Augusto Aras em adotar
providências em investigação sobre o uso da estrutura do governo federal na
defesa do senador Flávio Bolsonaro.
“O procurador-geral da República (...) vem,
sistematicamente, deixando de praticar ou retardando a prática de atos
funcionais para favorecer a pessoa do presidente da República ou de pessoas que
lhe estão no entorno”, diz a representação.
No dia 18 de agosto, os senadores
Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentaram uma
notícia-crime no STF contra Augusto Aras, por suposto crime de prevaricação. Os
parlamentares sustentam que o procurador-geral da República tem sido omisso
diante do que qualificam de “crimes e arbitrariedades” do presidente Jair
Bolsonaro.
Além do necessário andamento dessas
investigações, em suas esferas específicas, cabe ao Senado rejeitar a
recondução de Augusto Aras à frente da PGR. Não merece o posto quem se mostra
tão desconfortável com suas atribuições. O cargo de procurador-geral da
República é para servir à lei, e não a outro senhor, por mais poderoso que
seja.
A minirreforma trabalhista
O Estado de S. Paulo
Antes mesmo da votação pelo Senado, MPT já anunciou que a questionará no STF
Uma semana após a aprovação, pela Câmara
dos Deputados, da minirreforma trabalhista promovida pela Medida Provisória
(MP) 1.045, 15 procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgaram
um documento no qual anunciam que questionarão a constitucionalidade daquele
texto no Supremo Tribunal Federal (STF).
A iniciativa foi liderada pelo procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira. Segundo ele, ao suprimir direitos trabalhistas, a minirreforma acarretará “consequências altamente danosas para a sociedade”. Originariamente, a MP 1.045 tinha por objetivo estimular a contratação, a formação e a qualificação profissional de jovens, enquanto durar a pandemia. Contudo, os ministros da Economia e do Trabalho e Previdência incluíram no corpo da MP vários dispositivos nos quais cogitavam há tempos, sob a justificativa de que propiciariam a transição desses jovens do mercado informal para o mercado formal de trabalho, com carteira assinada pelo empregador.
Embora o texto aprovado pela Câmara tenha
de passar pelo Senado e, depois, ser submetido à sanção do presidente da
República, os procuradores afirmaram que decidiram recorrer ao STF antes do
término desse processo porque a minirreforma trabalhista já está disseminando
insegurança jurídica nos meios empresariais e sindicais. Segundo os
procuradores, o governo não poderia ter introduzido novas regras trabalhistas
numa MP que, originariamente, não previa mudanças de normas desse porte.
Os procuradores ensinam que tais mudanças
somente podem ser feitas por meio de projetos de lei, que têm uma tramitação
mais lenta e permitem o debate do tema por todos os setores interessados.
Argumentaram, ainda, que, ao incluir sem discussão prévia a supressão de
direitos numa MP cujo objetivo era estimular a formação profissional de jovens,
o governo descumpriu uma convenção da Organização Internacional do Trabalho,
ratificada pelo Brasil. Segundo a convenção, as alterações na Consolidação das
Leis do Trabalho têm de ser debatidas previamente por uma comissão formada por
representantes do governo, dos empregadores e dos empregados.
Entre as críticas feitas pelos procuradores
às inovações introduzidas na MP e aprovadas pela Câmara destaca-se a redução de
prerrogativas da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho em matéria de
fiscalização do cumprimento de normas sobre segurança no trabalho. Outro ponto
criticado é a não previsão de direitos assegurados pela Constituição – como
13.º salário e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – nos programas destinados
à qualificação profissional de jovens.
Os procuradores também criticam as
restrições impostas aos fiscais do trabalho na aplicação de multas em empresas
que desrespeitam normas de segurança do trabalho. Pelo texto aprovado pela
Câmara, as empresas só poderão ser autuadas na segunda visita de um fiscal. O
máximo que ele poderá fazer na primeira visita é orientá-las a sanar a
infração. E, ao contrário do que ocorre hoje, as empresas faltosas ainda passam
a ter o direito de questionar o auto de infração num conselho
administrativo.
“Retiram-se, assim, poderes punitivos e
inibitórios da inspeção do trabalho, o que pode resultar em estímulo à prática
de ilicitudes e incremento de acidentes, mortes e adoecimentos nas relações
laborais”, afirmam os procuradores trabalhistas. Essas mudanças ferem o
princípio do valor social do trabalho definido pela Constituição, concluem. Em
resposta, o governo alega que essas inovações não diferem do que já consta em
outros textos legais, como é o caso da Lei de Estágio, que não prevê direitos
trabalhistas, pois seu objetivo é a qualificação do estagiário.
Não há dúvida de que a minirreforma
introduzida pela MP 1.045 afetará profundamente o mundo do trabalho. Por isso,
o mais sensato seria que governo, representantes dos empregadores e dos
empregados dialogassem sobre os pontos contestados pelos procuradores
trabalhistas e chegassem a um acordo. Diante dos problemas que o País enfrenta,
nestes dias de pandemia, não faz sentido algum judicializar a esse ponto as
relações trabalhistas.
Caem as máscaras
Folha de S. Paulo
Subprocuradora e ministro alinham-se a
Bolsonaro ao desdenhar prevenção à Covid
O alinhamento a Jair Bolsonaro na cúpula da
Procuradoria-Geral da República não se limita à omissão de Augusto Aras perante
evidências de delitos sanitários e liberticidas. Sua preposta Lindôra Araújo
rebaixa-se também a deturpar a ciência para solapar a objetividade que
inculparia o presidente.
A subprocuradora decidiu pelo arquivamento
de notícia-crime contra ele por reincidir no descumprimento da
obrigação de usar máscaras faciais para evitar a propagação do coronavírus.
Ao fundamentar a providência, extrapolou
a argumentação jurídica e aventurou-se em esfera estranha a sua
autoridade ao afirmar que não há certeza científica da prevenção assim
oferecida.
Araújo alega que pesquisas em favor de
cobrir boca e nariz são apenas observacionais e epidemiológicas. Trata-se de
tentativa canhestra de usar o vocabulário de especialistas para apoiar tese
contra a qual há consenso entre eles.
O raciocínio tosco implica que uma norma
legal impondo as máscaras só poderia ser baixada após estudo clínico controlado
a lhe dar apoio. Ora, até um estudante de iniciação científica percebe que
seria antiético submeter humanos a experimento em que alguns deles seriam
expostos a risco sem proteção, no grupo de controle.
A subprocuradora ouviu o galo negacionista
cantar, mas não sabe onde, ou prefere não saber. Já o ministro da Saúde,
Marcelo Queiroga, sendo médico, não tem desculpa para desqualificar norma
impondo máscaras, como
vem de fazer.
A circunstância do atentado às boas
práticas diz tudo: em entrevista a um canal bolsonarista investigado por
disseminar notícias falsas, o cardiologista sucessor do general obediente bateu
continência para o auto-atribuído direito de recusar o dispositivo em
aglomerações que o presidente provoca (para não falar do gesto abominável de
desproteger uma criança).
Incoerência e oportunismo não caem bem no
comandante do combate à Covid, mas Queiroga não se constrange em defender a
importância de máscaras na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado e depois
investir contra sua obrigatoriedade em um veículo de reputação duvidosa.
Disfarçou a contraindicação sob a falácia
do direito pessoal, quando em verdade está em jogo o objetivo de impedir o
transmissão do coronavírus na coletividade.
Pode parecer pouco para um governo que
chegou à atrocidade de boicotar vacinas —e a CPI ainda apura o que mais se fez
nessa seara. Entretanto são mostras da disposição incansável do bolsonarismo à
mistificação da pandemia e à sabotagem dos esforços sanitários, para as quais
acabam concorrendo autoridades e instituições.
Acolher afegãos
Folha de S. Paulo
Brasil deveria emitir vistos humanitários
para os que tentam fugir do Talibã
Correram o planeta as imagens chocantes do
caos que tomou o aeroporto internacional de Cabul, capital do Afeganistão, após
a conquista da cidade pelo Talibã.
Uma multidão desesperada de civis invadiu a
pista de voo tentando embarcar nos aviões que partiam, com alguns chegando a se
agarrar ao trem de pouso das aeronaves.
Não faltam motivos para a agônica tentativa
de fuga. Embora o grupo extremista islâmico venha buscando passar uma imagem de
moderação, os horrores do período em que o Talibã esteve no poder, de 1996 a
2001, permanecem arraigados na memória dos afegãos.
Seu domínio foi marcado pela supressão de
direitos humanos e pela brutalidade sem freio. O estádio da capital tornou-se
palco de execuções públicas. Cinema, música e televisão foram proibidos.
As mulheres, em especial, sofreram
amargamente. Impedidas de frequentar escolas, elas só tinham permissão para
sair de casa acompanhadas de um homem.
Agora, a despeito das promessas,
avolumam-se relatos de feroz repressão a protestos contra o movimento em Cabul
e outras partes do país, provocando mortes.
Trata-se, pois, de um momento crítico, a
exigir esforço concertado da comunidade internacional. No domingo (15), mais de
60 países emitiram um comunicado conjunto pedindo que os afegãos que queiram deixar
o país possam fazê-lo sem impedimentos.
Depois dessa etapa, contudo, essas pessoas
precisam de condições mínimas para conseguir se estabelecer em outro local. É
algo em que o Brasil pode e deve colaborar.
Ao reconhecer, desde o final de 2020, a
situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos” no Afeganistão,
o governo
brasileiro passou a facilitar o pedido de refúgio para os afegãos que
aqui ingressem.
Ocorre que só é possível valer-se desse
expediente depois da chegada ao Brasil. Assim, convém que o Itamaraty avalie a
emissão de vistos humanitários para os oriundos do país asiático, a exemplo dos
já concedidos aos sírios.
Isso não só torna possível a viagem como
dá, àqueles que aqui aportam, autorização para residência e trabalho, além de
acesso às redes públicas de saúde e educação.
Ao longo de sua história, o Brasil tem
demonstrado disposição de acolher pessoas de outras nacionalidades que fogem de
crise e perseguição. É hora de colocar essa tradição em prática novamente.
Cenário externo pode se tornar menos
benigno para o Brasil
Valor Econômico
Mudança do signo da política monetária nos
EUA coincidirá com o acirramento de uma disputa eleitoral polarizada no Brasil,
um arranjo que promete fortes instabilidades
A recuperação global enfrenta percalços que
podem tornar o cenário externo bem menos favorável ao Brasil nos próximos
meses. O terceiro trimestre deve apresentar uma desaceleração moderada nos dois
principais motores atuais da economia mundial, Estados Unidos e China, devido à
presença de um fator comum: a rápida disseminação da variante delta da
covid-19. A perda de ritmo, no entanto, tende a não provocar o mesmo efeito
sobre a inflação, em alta nos EUA e nos países emergentes, pois vem acompanhada
de problemas nas cadeias globais de suprimentos. O Federal Reserve americano já
considera que até o fim do ano possa começar a reduzir seu megaprograma de
compras de US$ 120 bilhões mensais.
A combinação de distúrbios nas cadeias de
produção com os movimentos da variante delta produz efeitos perturbadores.
Primeiro, na China, onde duros lockdowns estão isolando algumas regiões no
principal parque industrial global. Já como efeito do combate aos novos surtos
de covid-19 e de um aperto nas condições financeiras para moderar expansão
exagerada do crédito e do setor imobiliário, investimentos, construção de
moradias e vendas no varejo perderam ímpeto em julho. Está em processo de
revisão para baixo a perspectiva de que o país cresça mais de 8% em 2021.
A delta está parando gradualmente as
atividades dos países do Sudeste Asiático, importantes fornecedores mundiais (e
da China). A pandemia no Vietnã e Malásia afeta particularmente a oferta global
de chips e o sinal de complicações crescentes veio ontem com o anúncio da
Toyota, a maior montadora mundial, de corte de 40% de sua produção. Tailândia e
Indonésia reduziram ritmo de crescimento. A unir estes países em suas
desventuras e diferenciá-los da China está o fato de a vacinação ter sido muito
baixa ou quase inexistente na maioria deles.
Mesmo nos Estados Unidos a delta começa a
fazer estragos nos indicadores, como mostrou a queda de 1,1% das vendas no
varejo. Dois terços da população americana estão totalmente vacinados, mas os
hospitais estão se enchendo novamente e há sinais de queda na mobilidade sem
que tenha havido melhorias significativas no suprimento de bens para a produção
industrial. A perspectiva é de que a taxa anualizada do PIB americano decresça
dos 6,5% do segundo trimestre, mas mantenha assim mesmo um ritmo maior do que o
de sua tendência de longo prazo.
O impacto disso na inflação, cujo índice
cheio é de 5,4% em 12 meses, pode não ser muito forte. Não apenas subsistem
gargalos na produção, como a recuperação dos serviços para além de seu nível
pré-pandemia acrescenta alguma pressão adicional sobre os preços. No sentido
contrário atua o fim dos programas de auxílio a empresas e trabalhadores. Por
outro lado, há um excesso de poupança privada de US$ 2,5 trilhões que pode
parcialmente desaguar em gastos.
Há tendências conflitantes. A expansão da
delta e a queda das vendas do varejo tendem a reduzir o ímpeto dos preços, mas
os problemas de oferta o impedem, até certo ponto. O fato é que mesmo com a
redução das vendas do comércio em julho, o nível de estoques em poder do varejo
e da indústria é baixo porque não conseguem aumentar a velocidade de reposição.
Com o avanço do emprego os salários estão subindo, mas eles estão perdendo a
corrida para a inflação.
O Federal Reserve, por seu lado, está disposto
a reduzir suas compras de títulos até o fim do ano, segundo a ata de sua
reunião de julho. Para a maioria dos membros do Fomc, o critério para iniciar a
redução, o de “mais progressos substanciais” já teria sido satisfeito em
relação à estabilidade de preços e estaria “perto de ser satisfeito” em relação
à outra perna do mandato, o máximo emprego.
Da última vez em que o Fed ameaçou iniciar
o fim no afrouxamento monetário, em 2013, o mundo emergente veio abaixo. A ata
do Fed divulgada na quarta sacudiu os mercados, trazendo perdas nas bolsas,
enquanto que o enfraquecimento da economia da China e do Sudeste asiático
derrubaram as commodities, especialmente petróleo e minério de ferro. O dólar
retomou vigor, o que é ruim para o combate à inflação brasileira, que provocou
uma corrida altista de juros privados - que pularam acima dos dois dígitos nos
vencimentos de longo prazo. A mudança do signo da política monetária nos
Estados Unidos coincidirá com o acirramento de uma disputa eleitoral polarizada
no Brasil, um arranjo que promete fortes instabilidades.
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