Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Não é verdade que são os pais dos filhinhos
de papai que pagam os impostos que asseguram a existência da universidade
pública. Todo comprador de alguma mercadoria paga imposto
As ocorrências se deram na mesma semana. A Marinha
mobilizou uma frota de tanques de guerra fumacentos para ir ao Palácio do
Planalto levar ao presidente da República um convite para acompanhar manobras
militares em Goiás. Por meio da demonstração militar, na verdade, o governo
queria intimidar os que poderiam recusar a proposta de substituir o voto
eletrônico pelo voto impresso, a expressão eleitoral moderna pela obsoleta e
manipulável.
O ministro da Educação, por seu lado, fez
um pronunciamento pela TV Brasil para dizer o que pensa sobre a universidade:
deveria ser para poucos, para muitos os cursos técnicos dos institutos
federais. Além disso, reitores não podem ser esquerdistas, menos ainda
lulistas. Não precisam ser bolsonaristas. É que o são porque proibidos de não
sê-lo.
Ao mencionar as cotas nas universidades
federais, o ministro acha que foi a lei de cotas que fez com que a universidade
pública deixasse de ser uma universidade de filhos de ricos. Oriundo de uma
universidade confessional e privada, ele não tem a menor ideia do que é a
universidade pública.
Criada em 1934, a Universidade de São Paulo, sob inspiração e ação de Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), do setor culto e inteligente da elite, foi-o sob o princípio de que deveria ser “pública, laica e gratuita”. Não por acaso ela é a maior e a mais importante universidade brasileira e está entre as pouco mais do que uma centena de reputadas universidades do mundo. Não é só fazendo pesquisa sobre grafeno, em universidade privada, com dinheiro público, que se faz uma grande universidade.
O ministro foi longe na confissão
autoritária: expôs seu espantoso ponto de vista sobre as diferenças sociais e
sobre os direitos sociais dos jovens que aspiram a ingressar numa universidade
pública:
“Pelo menos nas federais, 50% das vagas são
direcionadas para cotas. Mas os outros 50% são de alunos preparados, que não
trabalham durante o dia e podem fazer cursinho. Considero justo, porque são os
pais dos ‘filhinhos de papai’ que pagam impostos e sustentam a universidade
pública. Não podem ser penalizados.” No Brasil ideológico do ministro, os ricos
é que são injustiçados.
A interpretação é capenga. Alunos que
ingressam nas universidades públicas por meio de cotas não são despreparados. O
objetivo das cotas é o de assegurar equidade no acesso à universidade. As
categorias sociais em situação adversa, sem a correção das cotas, ficariam em
desvantagem em relação a candidatos sobrescolarizados, não necessariamente mais
capazes ou mais preparados. Há mais gente capaz de ingressar no curso superior
do que vagas para acolhê-la.
Não é verdade que são os pais dos filhinhos
de papai que pagam os impostos que asseguram a existência democrática da
universidade pública. Se levarmos em conta os diferentes impostos, todo
comprador de alguma mercadoria paga imposto. Se levarmos em conta que o
capitalismo brasileiro é um capitalismo subdesenvolvido, baseado na
sobre-exploração do trabalho humano, os que não são filhos de papai não o são
porque seus pais são mal pagos, de uma economia que paga menos do que lhe vale
o trabalho para que os pais dos bem-nascidos lucrem mais.
Num país de desigualdades sociais extremas
e injustas, a adoção de regras de compensação social da injustiça do
concentracionismo de renda tem por objetivo oferecer uma oportunidade à
sociedade, não só aos que querem estudar. Em primeiro lugar, à própria
universidade pública. A de recrutar os potencialmente capazes de colocar sua
inteligência a serviço da sociedade e do país, independentemente da origem
social. Isso é esforço de socialização democrática da distribuição do
conhecimento.
Há sábios também entre os pobres, já o
sugeriram o antropólogo português Adolfo Coelho (1847-1919) e o filósofo
esquerdista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), ambos influentes na
inteligência brasileira.
Entre moradores de rua de nossas grandes
cidades há milhares de crianças e jovens superinteligentes que sobrevivem
porque o são. Trata-se de um desperdiçado capital social da nação. Os que
tiveram a oportunidade e o apoio necessário, transformaram-se em cientistas
competentes, professores, médicos, geólogos, sociólogos, antropólogos,
engenheiros, físicos, químicos. Poderiam até ter sido militares de alto
discernimento sobre as verdadeiras funções do soldado.
O ministro se baseia, em seu julgamento,
numa concepção ideológica e extremista das diferenças sociais, anti-histórica,
socialmente excludente e profundamente danosa ao país. O ministro interpreta a
desigualdade social de um ponto de vista pré-moderno, estamental, feudal. Sua
opção pela educação neoliberal divide o Brasil em duas pátrias, o que é próprio
do bolsonarismo.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).
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