Titular da pasta da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, o ex-ministro descarta ruptura democrática, mas diz haver riscos de conflitos em 2022
Victor Irajá
Ex-ministro da Defesa e da Segurança
Pública durante o governo de Michel Temer, Raul Jungmann tornou-se uma das principais
vozes nas questões mais candentes às Forças Armadas. No comando do ministério
entre maio de 2016 e janeiro de 2019, ele defende a aprovação de uma Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) que limita a atuação de militares da ativa no
Executivo, assunto que volta à tona com a polêmica participação de oficiais de
alta patente no governo de Jair Bolsonaro. Jungmann externa preocupação com a
presença de coronéis e generais à frente de cargos importantes para os quais
não foram preparados, como o de ministro da Saúde, em plena pandemia.
Familiarizado com os bastidores do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele refuta
a possibilidade de militares embarcarem em uma potencial aventura golpista do
presidente Jair Bolsonaro. Mas, nesta entrevista concedida a VEJA, não descarta
um cenário de ameaçadora instabilidade para o ano que vem e conta uma versão
bastante preocupante para a saída dos comandantes das Forças Armadas em março.
Qual o impacto da crise
institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal do
ponto de vista das Forças Armadas?
Infelizmente, existe no alto oficialato uma
visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do
ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. Os
militares têm uma leitura de que o STF não está deixando o presidente Bolsonaro
governar, algo do que obviamente discordo. A Corte, na maioria de suas
decisões, tem contido o presidente em seus limites constitucionais. Mas algumas
decisões polêmicas embasaram essa imagem que se formou nas Forças Armadas.
Existe também a leitura equivocada de que o Supremo teria destruído a Operação
Lava-Jato. É algo preocupante.
Mas cabe aos militares esse
tipo de posicionamento sobre o STF?
Como instituição, as Forças Armadas não se
pronunciam e não têm posição a esse respeito. Refiro-me a militares como
indivíduos. Essa visão é, sobretudo, presente entre os oficiais da reserva,
mais do que entre militares da ativa. Tenho conversado com ministros do Supremo
sobre isso e chegou-se a se cogitar uma conversa entre dois ou três deles com
os comandantes das três Forças, mas com essa última crise isso não aconteceu. É
importante que esses esclarecimentos sejam feitos.
O desfile de blindados da
Marinha no última dia 10 foi algo inédito. Como avaliou a parada?
Desfile de tropas e blindados nas cercanias dos poderes só é aceitável em datas comemorativas nacionais. Fora disso, é ameaça real ou simbólica — e algo inaceitável. Simbolicamente, dá sequência à série de atos de constrangimento do presidente da República aos demais poderes. Em termos de balanço, o desfile revelou-se uma ópera-bufa. O efeito foi extremamente negativo e, ainda, ocorreu a derrota do voto impresso.
Virou piada a situação dos
blindados durante o desfile. Os armamentos brasileiros estão de fato
sucateados?
O Exército brasileiro tem um conjunto de
tanques de alta qualidade, aproximadamente 250 deles estacionados em Santa
Maria (RS). Já a
Marinha, obviamente, tem seu melhor equipamento nos navios. Aquilo não reflete
a realidade das Forças Armadas. Se outros materiais fossem levados a Brasília,
a impressão seria outra.
“Em
1964, existia apoio de setores da imprensa, de igrejas, do empresariado, fora
uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há
ambiente para isso”
O senhor é um firme defensor
da Proposta de Emenda Constitucional que limita a atuação de militares da ativa
no governo. Como se daria esse controle?
Em democracias consolidadas é o Congresso
Nacional que faz a supervisão e a fiscalização das Forças Armadas e fixa o rumo
da Defesa nacional, definindo quais políticas o país necessita. No Brasil, o
Congresso Nacional se alienou desse papel. Os militares precisam ser liderados
pelo poder político representativo. Os civis, por sua vez, não apresentaram
nenhum projeto para os militares.
Pelo seu raciocínio, os
militares ocupam um vazio deixado pelos civis. Mas não há interesse exacerbado
dos generais por cargos na administração pública?
Por que o militar recusaria convite para
ganhar mais? Eles não são os culpados por quererem ganhar mais. Por isso
acredito que quem deve limitar essa atuação é o Congresso, para que não haja
politização das Forças Armadas.
Quais cargos são legítimos de
ser ocupados por militares?
Órgãos como o Gabinete de Segurança
Institucional, o Ministério da Defesa, cargos em áreas nuclear e espacial, que
são áreas afins às atividades deles. Hoje, existe uma situação de acusações
mútuas. A PEC sai das discussões vazias e traz constitucionalidade para o
debate, deixando claro quais os limites da atuação no governo.
Como avalia a não punição do
ex-ministro Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação governista?
A decisão de não puni-lo foi indefensável.
Assim como a manifestação tosca do chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida
Baptista Junior, de que “homem armado não ameaça”. Até então, eu vinha
defendendo os generais em cargo político e na reserva. Os comandantes militares
estavam mantendo-se enquadrados pelas linhas constitucionais. O que o Baptista
fez é muito grave. São dois casos de punição, e foi um erro não puni-los.
O presidente Jair Bolsonaro
repete o termo “meu Exército”. Como vê essa reiteração contínua de sua
ascendência sobre as Forças Armadas?
Existe uma constante atuação de
constrangimento por parte do presidente da República, para forçar as Forças
Armadas a endossar os atos e as falas dele. Foi por não endossar os achaques ao
Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores, pelas
políticas engendradas na pandemia, que, pela primeira vez, os chefes da
Aeronáutica, Marinha e Exército foram demitidos. Eles não se dobraram. Os três
foram demitidos porque se recusaram a envolver as Forças Armadas nas declarações
e nos atos do presidente da República. Toda vez que ele se sente ameaçado, sobe
o tom e desrespeita os outros poderes, constrangendo as Forças Armadas a
endossar esse discurso.
A saída dos três comandantes
das Forças Armadas, em março, foi, de fato, algo inédito. O que motivou a
demissão?
O respeito à Constituição. Ele chamou um
comandante militar e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a
resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som
para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um
depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse
tipo, eles foram demitidos.
Há risco de ruptura
democrática nas eleições de 2022?
As Forças Armadas não estão disponíveis
para nenhuma aventura ou golpe. Em 1964, existia apoio de setores da imprensa,
da Igreja, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um
golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para um golpe de Estado. Não tem nenhuma
força política a favor disso, muito pelo contrário. Seria um raio em céu azul.
Mas o próprio presidente
trata de manifestar sua intenção de não aceitar o resultado das eleições sem o
voto impresso. Não é preocupante?
Existem riscos. A campanha de Bolsonaro
para desmoralizar o voto eletrônico envolve, no fundo, retirar credibilidade do
Tribunal Superior Eleitoral, sem apresentar nenhuma prova.
Quais os riscos dessa
campanha, já que as Forças Armadas não endossariam uma possível tentativa de
golpe?
Bolsonaro corteja as polícias e afrouxa o
controle das armas. Ele é o único presidente da República que vai a cerimônias
de formação de policiais. Quando propõe que o povo se arme, ele quebra o
monopólio da violência legal por parte do Estado. É grave. Só o Estado tem a
prerrogativa legal para o uso da força. Ele propõe jogar brasileiros contra
brasileiros. No limite, isso tem o nome de guerra civil. Vamos ter problemas em
2022, não sei em qual nível. Quando o presidente diz que não teremos eleições
se não forem eleições limpas, ele prepara o terreno para que vivamos o que os
Estados Unidos passaram na invasão do Capitólio, só que de maneira ampliada.
Como?
A situação que mais me preocupa é esta:
imagine um cenário de motins policiais no ano que vem e suponha que um
governador peça ao presidente da República a presença das Forças Armadas para a
garantia da lei e da ordem e ele não o faça. Este governador, então, recorre ao
Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional. Chegamos a um impasse
institucional. Só o presidente da República pode colocar tropas nas ruas, mais
ninguém. Nunca vivemos isso. Ele é o comandante em chefe.
Qual o impacto para as Forças
Armadas do envolvimento de coronéis na suposta corrupção na compra de vacinas?
É preciso que seja investigado. Sendo
militar ou civil, incorrendo em crime, tem de ser punido. Não faz sentido em um
país com sanitaristas de renome internacional e qualidade comprovada em
políticas sanitárias ter militares ocupando cargos no Ministério da Saúde.
Cria-se um desgaste de imagem, embora eles não representem as Forças Armadas. A
gestão do Eduardo Pazuello não teria acontecido se houvesse limites à atuação
de militares em cargos políticos.
“Ele chamou um comandante e perguntou se os
jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que
sobrevoassem o STF acima da velocidade do som”
Mais de 74% dos gastos
militares são com pessoal e pensões. Trata-se de um gasto sustentável?
O Orçamento do Brasil com Defesa está
abaixo da média global, não é exorbitante, mas o gasto com pessoal é demasiado.
Desde o Império, adotamos uma estratégia de ocupação de território. As Forças
Armadas de países desenvolvidos têm estratégias diferentes, com investimento
tecnológico e profissionalização das tropas. Uma grande quantidade de recursos
humanos pressiona o Orçamento, que comprime os aportes essenciais. Precisamos
de uma Força com alta capacidade de mobilidade e letalidade, tecnológica.
A saída do general Luiz
Eduardo Ramos representa uma perda de influência dos militares no governo?
É uma disputa por espaço. O Centrão deseja
mais cargos, alguns detidos por militares. Até aqui, a batalha tem sido vencida
pelo Centrão. Esse governo é frágil e precisa, desesperadamente, de uma
blindagem. Bolsonaro viu crescer o risco de um remoto impedimento com as falhas
no combate à pandemia e recorreu ao velho presidencialismo de coalização.
Numa possível vitória do
ex-presidente Lula, como o senhor acha que o Exército se comportará?
Cumprirá a Constituição e baterá
continência para o comandante em chefe das Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de
2021, edição nº
2752
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