Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Várias questões legislativas essenciais ao
projeto de reeleição do presidente Bolsonaro passarão pelo Senado
O futuro político do governo Bolsonaro está muito
vinculado ao comportamento do Senado nos
próximos meses. Aquela Casa legislativa tomará decisões centrais que impactarão
fortemente a popularidade presidencial e o projeto de reeleição. Mais do que
isso: está em jogo o equilíbrio democrático do país, uma vez que a Câmara
federal e o Ministério
Público Federal pendem mais para o lado do presidente da
República, ao passo que o STF e
a Federação são
hoje contrapesos ao bolsonarismo. Do ponto de vista institucional, o desempate
caberá aos senadores.
Dois fatores explicam esse lugar de árbitro
do Senado. Um é estrutural, com caraterísticas que são intrínsecas à Casa. O
outro é mais conjuntural e diz respeito à forma como Bolsonaro lidou com os
senadores e a maneira como eles vislumbram seu futuro político imediato,
especialmente com o olhar nas eleições de 2022.
Embora o bicameralismo tenha peculiaridades nos vários países que o adotam, a opção institucional por duas Casas legislativas geralmente transforma uma delas em espaço de uma elite política mais experiente. O Senado brasileiro cabe bem nesta definição. Normalmente atua como instituição revisora e moderadora de atos da Câmara federal e é composta majoritariamente por políticos com grande influência regional, sendo que uma parte deles foi inclusive governador - atualmente, cerca de 20% deles exerceram essa função. Outro elemento dá maior independência aos senadores: o tempo de mandato de oito anos, o que lhes dá mais autonomia na luta política imediata.
A este aspecto mais estrutural soma-se um
cenário conjuntural que incentiva a maior independência do Senado em relação ao
governo Bolsonaro. Apesar de muitos dos novos eleitos em 2018 terem vindo na
onda da nova política que foi fundamental para o bolsonarismo, a maioria dos
senadores não é completamente governista. Menos da metade se enquadraria nesta
categoria e, quando o assunto é muito polêmico, o Executivo conta fielmente com
cerca de 30 dos 81 membros desta Casa.
O que levou a este cenário mais
desfavorável neste quadriênio? Primeiro, o pacto de troca de cargos e,
sobretudo, recursos é bem mais azeitado com os deputados, que abocanharam a
maior parte do chamado Orçamento secreto. Não por acaso Arthur Lira tem uma
ligação mais orgânica e colaboracionista com o presidente da República, embora
só será fiel enquanto isso for proveitoso eleitoralmente. Como se diz em
Brasília, ninguém compra integralmente o Centrão, apenas aluga. Já no Senado há
um sentimento muito forte de ser o “patinho feio” nesta barganha entre os
Poderes.
Houve ainda brigas políticas do governo com
lideranças estratégicas do Senado. Antes muito ligado ao bolsonarismo,
especialmente na campanha eleitoral das eleições municipais de 2020, o senador
Davi Alcolumbre, antigo presidente da Casa, hoje está magoado com o Planalto e
colocando dificuldades no comando da Comissão de Constituição e Justiça. Renan
Calheiros, o maior conhecedor dos meandros políticos da Casa senatorial, é oposição
direta a Bolsonaro. O desenrolar da CPI da Covid-19 aumentou a quantidade de
atritos e atiçou um espírito mais oposicionista, tanto por causa das loucuras e
falcatruas descobertas pela investigação, como também em razão da frágil
atuação da bancada governista. E outras mágoas mais poderiam ser listadas aqui,
o que demonstra a inabilidade do Palácio do Planalto em lidar com caciques
regionais mais experientes.
O próprio presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco, mesmo tendo sido eleito com o apoio presidencial, tem obtido cada vez
mais autonomia em suas ações. Ele tem aspirações políticas maiores e por isso
leva em conta a perda de popularidade de Bolsonaro e, sobretudo, a visão
negativa que setores relevantes da sociedade têm hoje do governo. Além disso, ao
ser colocado no rol dos presidenciáveis por Gilberto Kassab (presidente do
PSD), a manutenção de uma imagem independente, como caberia a uma das possíveis
candidaturas de terceira via, tem sido alimentada.
O cenário de maior independência do Senado
ganha uma enorme relevância por causa de quatro motivos: primeiro, a tentativa
de diferenciar-se da Câmara federal; segundo, o fato de que muitos senadores
poderão ser candidatos à reeleição ou a governos estaduais em lugares em que
popularidade presidencial não vai bem ou onde candidatos vinculados ao
bolsonarismo serão seus adversários; terceiro, as reiteradas críticas à
democracia feitas por Bolsonaro colocaram o Senado numa posição de defensor
político do regime democrático; e, quarto, várias questões legislativas
essenciais ao projeto de reeleição do presidente da República passarão no
segunda semestre por aquela Casa.
Diferenciar-se da Câmara hoje é, em poucas
palavras, afastar-se do lado negativo da imagem do Centrão. É claro que há
senadores que estariam próximos dos valores desse grupo, mas mesmo uma parte
destes quer ter maior autonomia e não passar a imagem de serem meros
colaboracionistas. Além disso, há pautas que estão sendo votadas ou já foram
aprovadas pelos deputados que não agradam à maioria dos membros do Senado, como
a volta das coligações em eleições proporcionais. O projeto desconjuntado de
reforma tributária enviado por Paulo Guedes e transformado num Frankenstein
pelo deputado Celso Sabino também terá muitas dificuldades para ser aprovado pelos
senadores, seja pelos seus problemas intrínsecos, seja porque o Senado tinha um
projeto mais estrutural de modificação dos tributos, gestado por vários anos e
com apoio da maioria dos governadores, e que perdeu a primazia na agenda
pública.
Muitos senadores são candidatos à reeleição
ou a governadorias, e tal fato os coloca em diversos casos como potenciais
adversários do presidente Bolsonaro. Na Região Nordeste, onde a popularidade do
presidente é muito baixa, é muito complicado participar das eleições com apoio
do Palácio do Planalto. Mesmo que novas políticas clientelistas sejam aprovadas
para obter votos, a força de Lula e Ciro é bem grande e isso atrapalha estar ao
lado do bolsonarismo. Nos Estados do Sudeste também não será fácil ter o
presidente da República como cabo eleitoral, porque trata-se da região em que o
oposicionismo ao governo federal, particularmente nas médias e grandes cidades,
deverá ter um crescimento contínuo até outubro de 2022.
O bolsonarismo tem maior poderio eleitoral
nas outras regiões, em especial no Sul e Centro-Oeste, bases agrícolas mais
fortes do país. Exatamente por isso há uma grande possibilidade de haver uma
inflação de candidatos buscando um rótulo bolsonarista nestes Estados, o que já
incomoda uma parte dos senadores atuais que pretendem se reeleger ou concorrer
aos governos estaduais. Assim, aumenta o número de membros do Senado que estão
descontentes com o jogo radical do bolsonarismo.
Um terceiro motivo tem fortalecido a
postura mais independente do Senado: a defesa política da democracia. A briga
entre Bolsonaro e o STF/TSE é uma disputa de quem tem voto contra quem é
togado. Isso deixa um vazio intrinsecamente político no contrapeso ao
presidente da República, que poderia ser feito pela Câmara federal, mas que não
ocorre pelo tipo de pacto político colaboracionista construído por Arthur Lira,
sempre muito tímido nas críticas às falas e práticas autoritárias do
bolsonarismo. Coube então a Rodrigo Pacheco, do ponto de vista institucional, o
papel de baluarte do regime democrático com legitimidade eleitoral para
realizar tal ação. Claro que ele cumpre esse papel de modo bem “mineiro”, pois
essa não é só sua natureza, mas a forma de edificar uma imagem de terceira via
no processo político.
A independência do Senado completa-se com
seu papel na agenda legislativa. Caberá a ele, em primeiro lugar, definir o
destino da CPI da Covid-19. O mais provável é que o relatório final seja muito
duro e peça o indiciamento de figuras-chave do bolsonarismo, inclusive do
presidente Bolsonaro. Isso terá, no mínimo, efeitos negativos na popularidade
presidencial. Depois, os senadores terão que dizer se aceitam ou não a
indicação de André Mendonça ao STF. Por ora, a estratégia é protelar, o que
demonstra uma Casa que se posiciona como árbitro final do conflito político.
Mas esta configuração política terá como
momento mais decisivo a votação dos projetos do Executivo criados para tentar
viabilizar orçamentariamente a reeleição de Bolsonaro. É possível que os senadores
coloquem dificuldades para aprovação da reforma tributária de Guedes e,
principalmente, da PEC dos precatórios. Sem aprovar este último projeto,
verdadeiro calote populista que destruirá as bases fiscais de longo prazo do
país, o governo não garantirá o instrumento eleitoral para conquistar o voto
dos mais pobres, seu calcanhar de aquiles. Desse modo, o Senado dará a palavra
final sobre as chances eleitorais do bolsonarismo em 2022.
Muita água vai rolar em meio a essas
decisões senatoriais, mas o governo deveria levar mais em conta a independência
e os conflitos já existentes com o Senado para construir uma estratégia que ao
menos minimize o impacto desse problema. A transformação dos ministros do STF
em maiores inimigos é uma miopia de quem não está sabendo ler o jogo político
atual e entender onde está o ponto nevrálgico para sua sobrevivência.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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